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O sertão do padre Cícero

Não se pode deixar de considerar o sertão como espaço sagrado. Palco de movimentos messiânicos como Canudos, nessa terra árida foram e são frequentes os peregrinos, os beatos e os romeiros. O padre Cícero, chamado também de Padim Ciço, representa esse universo da crença popular, sendo uma das figuras religiosas mais cultuadas no interior nordestino até os dias atuais.

Cícero Romão Batista nasceu no município de Crato, no Ceará, em 1844. Ordenou-se padre em 1870 e, dois anos depois, mudou-se para Juazeiro do Norte, onde permaneceu pelo resto da vida. Lá restaurou a capela de Nossa senhora das dores e passou a desenvolver um trabalho pastoral. Pregava em missões, participava de novenas e organizava festas religiosas e procissões. Sua popularidade foi aumentando ano após ano, sendo considerado um religioso despretensioso e dedicado ao povo.

Em 1889, durante uma missa, a lavadeira Maria de Araújo recebeu o sacramento e foi ao chão. A hóstia em sua boca parecia estar envolvida por um líquido cor de sangue. Esse acontecimento ficou conhecido como o milagre de Juazeiro. Isso ainda teria ocorrido outras vezes, e ficou provado, por um grupo de médicos, que ela não mordia a língua nem utilizava qualquer artifício. O fenômeno só acontecia quando o padre Cícero celebrava a missa. A comunidade local interpretou o episódio como uma alusão ao derramamento de sangue de Jesus Cristo para a salvação dos seres humanos, e multidões começaram a frequentar o vilarejo para ver o fenômeno.

Com o constante crescimento das romarias a Juazeiro do Norte, o bispado cearense interveio e cobrou explicações do padre Cícero, pois a Igreja Católica passava por um processo de romanização, ou seja, de negação das práticas locais e afirmação das orientações do Vaticano para uniformizar as condutas. Em 1982, autoridades eclesiásticas consideraram que o ocorrido em Juazeiro não se tratava de um milagre, e ordenaram que se apresentasse uma nova interpretação. No entanto, as romarias não cessaram, ampliando a crença popular no milagre. Nesse mesmo ano, o padre Cícero foi suspenso, proibido de pregar a religião católica. Em 1896, persistindo as romarias e as missas, a Igreja Católica ordenou que ele se retirasse de Juazeiro. O padre foi para Salgueiro (PE) e, em 1898, viajou para Roma a fim de se explicar ao Santo Ofício. Lá foi julgado e o milagre, mais uma vez, condenado. No entanto, não foi expulso da Igreja. Novamente no Brasil, não conseguiu que o bispado aceitasse seu retorno a Juazeiro. Voltou para a cidade, entretanto não reatou com a Igreja.

Nos muitos anos que esteve sob o comando da Igreja em Juazeiro, padre Cícero recebeu inúmeras doações de fiéis, que fizeram dele um homem de respeitável patrimônio. Tinha muitas terras, gado e comercializava vários produtos, entre eles borracha, cana de açúcar e algodão.

Sem o apoio da Igreja, aliou-se aos coronéis locais. Os muitos romeiros que passaram a frequentar a região eram encaminhados por ele para servirem como trabalhadores nas fazendas locais, resolvendo o grave problema de mão de obra enfrentado pelos proprietários. Em 1911, Juazeiro foi emancipada do Município do Crato, e padre Cícero foi indicado para o cargo de prefeito pelo governador Nogueira Accioly, líder oligarca local. No mesmo ano, Padre Cícero assinou o chamado “Pacto dos Coronéis”, no qual dezessete chefes políticos da região se comprometiam a sustentar a oligarquia Accioly no governo estadual. Transformando em importante líder político da região do Cariri, intermediou negociação para que cessassem as disputas armadas entre os vários coronéis locais. Em 1912, foi eleito vice-presidente do Ceará e ampliou sua influencia política sobre o Nordeste. Em 1914, liderou a chamada Sedição de Juazeiro, que depôs o governador. Depois voltou a ser prefeito do Juazeiro, deixando o cargo somente em 1927.

Nos anos 1930, perdeu espaço político após a ascensão de Getúlio Vargas. Tentou ainda recuperar o direito ao sacerdócio, mas não obteve sucesso. Padre Cícero faleceu em 1934, aos 90 anos, causando grande comoção popular. As romarias continuaram e se intensificaram nos anos seguintes, e ele foi transformado em mito popular relacionado ao milagre original. Juazeiro do Norte se transformou em uma cidade-santuário, e até hoje milhares de romeiros visitam a grande imagem do padre Cícero.

Em 2002, cerca de 500 mil pessoas participaram da romaria que se iniciou em 1º de setembro e se estendeu até o dia 15 do mesmo mês. Fiéis das mais diferentes regiões costumam ir até juazeiro do Norte para pedir pelas chuvas no sertão e pela cura de doenças. Nesse mesmo ano, uma comissão da Igreja deu início a um processo para reabilitar o padre Cícero, o que abriria caminho para, posteriormente, tentar beatificá-lo e canoniza-lo. Em 2006, o Vaticano recebeu um dossiê de nove volumes sobre a vida do padre Cícero.

Fonte: Roberto Catelli Junior – História : texto e contexto ; Editora Scipione.


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