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Pedagogia "crítico-social dos conteúdos"

 

Papel da escola - A difusão de conteúdos é a tarefa primordial. Não conteúdos abstratos, mas vivos, concretos e, portanto, indissociáveis das realidades sociais. A valorização da escola como instrumento de apropriação do saber é o melhor serviço que se presta aos interesses populares, já que a própria escola pode contribuir para eliminar a seletividade social e torná-la democrática. Se a escola é parte integrante do todo social, agir dentro dela é também agir no rumo da transformação da sociedade. Se o que define uma pedagogia crítica é a consciência de seus condicionantes histórico-sociais, a função da pedagogia "dos conteúdos" é dar um passo à frente no papel transformador da escola, mas a partir das condições existentes. Assim, a condição para que a escola sirva aos interesses populares é garantir a todos um bom ensino, isto é, a apropriação dos conteúdos escolares básicos que tenham ressonância na vida" dos alunos. Entendida nesse sentido, a educação é "uma atividade mediadora no seio da prática social global", ou seja, uma das mediações pela qual o aluno, pela intervenção do professor e por sua própria participação ativa, passa de uma experiência inicialmente confusa e fragmentada (sincrética), a uma visão sintética, mais organizada e unificada.

        Em síntese, a atuação da escola consiste na preparação do aluno para o mundo adulto e suas contradições, fornecendo lhe um instrumental, por meio da aquisição de conteúdos e da socialização, para uma participação organizada e ativa na democratização da sociedade.

 Conteúdos de ensino - São os conteúdos culturais universais que se constituíram em domínios de conhecimento relativamente autônomos, incorporados pela humanidade, mas permanentemente reavaliados face às realidades sociais.

    Embora se aceite que os conteúdos são realidades exteriores ao aluno, que devem ser assimilados e não simplesmente reinventados, eles não são fechados e refratários às realidades sociais. Não basta que os conteúdos sejam apenas ensinados, ainda que bem ensinados; é preciso que se liguem, de forma indissociável, à sua significação humana e social.

      Essa maneira de conceber os conteúdos do saber não estabelece oposição entre cultura erudita e cultura popular, ou espontânea, mas uma relação de continuidade em que, progressivamente, se passa da experiência imediata e desorganizada ao conhecimento sistematizado. Não que a primeira apreensão da realidade seja errada, mas é necessária à ascensão a uma forma de elaboração superior, conseguida pelo próprio aluno, com a intervenção do professor.

  A postura da pedagogia "dos conteúdos" - Ao admitir um conhecimento relativamente autônomo - assume o saber como tendo um conteúdo relativamente objetivo, mas, ao mesmo tempo, introduz a possibilidade de uma reavaliação crítica frente a esse conteúdo. Como, sintetiza Snvders, ao mencionar o papel do professor, trata-se, de um lado, de obter o acesso do aluno aos conteúdos, ligando-os com a experiência concreta dele - a continuidade; mas, de outro, de proporcionar elementos de análise crítica que ajudem o aluno a ultrapassar a experiência, os estereótipos, as pressões difusas da ideologia dominante - é a ruptura.  

Dessas considerações resulta claro que se pode ir do saber ao engajamento político, mas não o inverso, sob o risco de se afetar a própria especificidade do saber e até cair-se numa forma de pedagogia ideológica, que é o que se critica na pedagogia tradicional e na pedagogia nova.   

 Métodos de ensino - A questão dos métodos se subordina à dos conteúdos: se o objetivo é privilegiar a aquisição do saber, e de um saber vinculado às realidades sociais, é preciso que os métodos favoreçam a correspondência dos conteúdos com os interesses dos alunos, e que estes possam reconhecer nos conteúdos o auxílio ao seu esforço de compreensão da realidade (prática social). Assim, nem se trata dos métodos dogmáticos de transmissão do saber da pedagogia tradicional, nem da sua substituição pela descoberta, investigação ou livre expressão das opiniões, como se o saber pudesse ser inventado pela criança, na concepção da pedagogia renovada.

Os métodos de uma pedagogia crítico-social dos conteúdos não partem, então, de um saber artificial, depositado a partir de fora, nem do saber espontâneo, mas de uma relação direta com a experiência do aluno, confrontada com o saber e relaciona a prática vivida pelos alunos com os conteúdos propostos pelo professor, momento em que se dará a "ruptura" em relação à experiência pouco elaborada. Tal ruptura apenas é possível com a introdução explícita, pelo professor dos elementos novos de análise a serem aplicados criticamente à prática do aluno. Em outras palavras, uma aula começa pela constatação da prática real, havendo, em seguida, a consciência dessa prática no sentido de referi-la aos termos do conteúdo proposto, na forma de um confronto entre a experiência e a explicação do professor. Vale dizer: vai-se da ação à compreensão e da compreensão à ação, até a síntese, o que não é outra coisa senão a unidade entre a teoria e a prática.   

 Relação professor-aluno – Se, como mostramos anteriormente, o conhecimento resulta de trocas que se estabelecem na interação entre o meio (natural, social, cultural) e o sujeito, sendo o professor o mediador, então a relação pelica consiste no provimento das condições em que professores e alunos possam colaborar para fazer progredir essas trocas. O papel do adulto é insubstituível, mas acentua-se também a participação do aluno no processo. Ou seja, o aluno, com sua experiência imediata num contexto cultural, participa na busca da verdade, ao confrontá-la com os conteúdos e modelos expressos pelo professor. Mas esse esforço do professor em orientar, em abrir perspectivas a partir dos conteúdos, implica um envolvimento com o estilo de vida dos alunos, tendo consciência inclusive dos contrastes entre sua própria cultura e a do aluno. Não se contentará, entretanto, em satisfazer apenas as necessidades e carências; buscará despertar outras necessidades, acelerar e disciplinar os métodos de estudo, exigir o esforço do aluno, propor conteúdos e modelos compatíveis com suas experiências vividas, para que o aluno se mobilize para uma participação ativa.

     Evidentemente o papel de mediação exercido em torno da análise dos conteúdos exclui a não-diretividade como forma de orientação do trabalho escolar, porque o diálogo adulto-aluno é desigual. O adulto tem mais experiência acerca das realidades sociais, dispõe de uma formação (ao menos deve dispor) para ensinar, possui conhecimentos e a ele cabe fazer a análise dos conteúdos em confronto com as realidades sociais. A não-diretividade abandona os alunos a seus próprios desejos, como se eles tivessem uma tendência espontânea a alcançar os objetivos das esperados da educação. Sabemos que as tendências espontâneas e naturais não são as tributárias das condições de vida e do meio. Não são suficientes o amor, a aceitação, para que os filhos dos trabalhadores adquiram o desejo de estudar mais, de progredir; é necessária a intervenção do professor para levar o aluno a acreditar nas suas possibilidades, a ir mais longe, a prolongar a experiência vivida. 

 Pressupostos de aprendizagem - Por um esforço próprio, o aluno; se reconhece nos conteúdos e modelos sociais apresentados pelo professor; assim, pode ampliar sua própria experiência. O conhecimento novo se apoia numa estrutura cognitiva já existente, ou o professor provê a estrutura de que o aluno ainda não dispõe. O grau de envolvimento na aprendizagem depende tanto da prontidão e disposição do aluno, quanto do professor e do contexto da sala de aula.  

Aprender, dentro da visão da pedagogia dos conteúdos, é desenvolver a capacidade de processar informações e lidar com os estímulos, do ambiente, organizando os dados disponíveis da experiência. Em consequência, admite-se o princípio da aprendizagem significativa que supõe, como passo inicial, verificar aquilo que o aluno já sabe. O professor precisa saber (compreender) o que os alunos dizem ou fazem, o aluno precisa compreender o que o professor procura dizer-lhes. A transferência da aprendizagem se má a partir do momento da síntese, isto é, quando o aluno supera sua visão parcial e confusa e adquire uma visão mais clara e unificadora.

Resulta com clareza que o trabalho escolar precisa ser avaliado, não como julgamento definitivo e dogmático do professor, mas como uma comprovação para o aluno do seu progresso em direção a noções mais sistematizadas.  

Manifestações na prática escolar - O esforço de elaboração de uma pedagogia "dos conteúdos" está em propor modelos de ensino voltados para a interação conteúdos-realidades sociais; portanto, visando avançar em termos de uma articulação do político e do pedagógico, aquele como extensão deste, ou seja, a educação "a serviço da transformação das relações de produção". Ainda que a curto prazo se espere do professor maior conhecimento dos conteúdos de sua matéria e o domínio de formas de transmissão, a fim de garantir maior competência técnica, sua contribuição "será tanto mais seja eficaz quanto mais seja capaz de compreender os vínculos de sua prática com a prática social global", tendo em vista (...) "a democratização da sociedade brasileira, o atendimento aos interesses das camadas populares, a transformação estrutural da sociedade brasileira".  

    Dentro das linhas gerais expostas aqui, podemos citar a experiência pioneira, mas mais remota, do educador e escritor russo, Makarenko. Entre os autores atuais citamos B. Charlot, Suchodolski, Manacorda e, de maneira especial, G. Skyders, além dos autores brasileiros que vêm desenvolvendo investigações relevantes, destacando-se Dermeval Saviani. Representam também as propostas aqui apresentadas os inúmeros professores da rede escolar pública que se ocupam, competentemente, de uma pedagogia de conteúdos articulada com a adoção de métodos que garantam a participação do aluno que, muitas vezes sem saber, avançam na democratização efetiva do ensino para as camadas populares.   

4. Em favor da pedagogia crítico-social dos conteúdos  

     Haverá sempre objeções de que estas considerações levam a posturas antidemocráticas, ao autoritarismo, à centralização no papel do professor e à submissão do aluno.

     Mas o que será mais democrático: excluir toda forma de direção, deixar tudo à livre expressão, criar um clima amigável para alimentar boas relações, ou garantir aos alunos a aquisição de conteúdos, a análise de modelos sociais que vão lhes fornecer instrumentos para lutar por seus direitos? Não serão as relações democráticas no estilo não-diretivo uma forma sutil de adestramento, que levaria a reivindicações sem conteúdo? Representam as relações não-diretivas as reais condições do mundo social adulto? Seriam capazes de promover a efetiva libertação do homem da sua condição de dominado?  

Um ponto de vista realista da relação pedagógica não recusa a autoridade pedagógica expressa na sua função de ensinar. Mas não se deve confundir autoridade com autoritarismo. Este se manifesta no receio do professor em ver sua autoridade ameaçada; na falta de consideração para com o aluno ou na imposição do medo como forma de tomar mais cômodo e menos estafante o ato de ensinar.

Além do mais, são incongruentes as dicotomias, tão difundidas por muitos educadores, entre "professor-policial" e "professor-povo", entre métodos diretivos e não-diretivos, entre ensino centrado no professor e ensino centrado no estudante. Ao adotar tais dicotomias, amortece-se a presença do professor como mediador pelos conteúdos que explicita, como se eles fossem sempre imposições dogmáticas e que nada trouxessem de novo. 

Evidentemente que, ao se advogar a interjeição do professor, não se está concluindo pela negação da relação professor-aluno. A relação pedagógica é uma relação com um grupo e o clima do grupo é essencial na pedagogia. Nesse sentido, são bem-vindas as considerações formuladas pela "dinâmica de grupo", que ensinam o professor a relacionar-se com a classe; a perceber os conflitos; a saber que está lidando com uma coletividade e não com indivíduos isolados, a adquirir-se a confiança dos alunos. Entretanto, mais do que restringir-se ao malfadado "trabalho em grupo", ou cair na ilusão da igualdade professor-aluno, trata-se de encarar o grupo-classe como uma coletividade onde são trabalhados modelos de interação como a ajuda mútua, o respeito aos outros, os esforços coletivos, a autonomia nas decisões, a riqueza da vida em comum, e ir ampliando progressivamente essa noção (de coletividade) para à escola, a cidade, sociedade toda.  Por fim, situar o ensino centrado no professor e o ensino centrado no aluno em extremos opostos é quase negar pedagógica porque não há um aluno, ou grupo de alunos, aprendendo sozinho, nem um professor ensinando para as paredes. Há um confronto do aluno entre sua cultura e a herança cultural da humanidade, entre seu modo de viver e os modelos sociais desejáveis para um projeto novo de sociedade. E há um professor que intervém, não para se opor aos desejos e necessidades ou à liberdade e autonomia do aluno, mas para ajudá-lo a ultrapassar suas necessidades e criar outras, para ganhar autonomia, para ajudá-lo no seu esforço de distinguir a verdade do erro, para ajudado a compreender as realidades sociais e sua própria experiência.

  LIBÂNEO, José Carlos. Didática, Cortês, 1994 ________________ Democratização da escola pública, São Paulo, Edições. Loyola,1985


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