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A Igreja popular (do golpe de 1964 até a redemocratização)

De início, parcela significativa da Igreja mostrou-se simpática ao movimento militar de 1964. Para a maioria do clero, era preciso conter o avanço comunista. Por isso, o então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Agnello Rossi, estava na primeira fila da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964.

No entanto, não demoraram a surgir vários conflitos entre a Igreja e o Estado. Desde a vitória da revolução cubana, em 1959, muitos militantes católicos passaram a ver no socialismo uma opção viável para a luta contra a miséria do povo brasileiro. Quando a polícia começou a prender os militantes da Ação Católica e os colaboradores do MEB (Movimento de Educação de Base), por suas eventuais simpatias com o socialismo, a Igreja mobilizou-se em sua defesa.

Os conflitos cresceram em intensidade a partir de 1968: numerosos padres foram presos, torturados e expulsos do Brasil; o bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hypólito, foi sequestrado e maltratado; houve órgãos da Igreja censurados e até fechados. A Igreja do Brasil teve também seus mártires: o padre Antônio Henrique Pereira Neto, assessor de Dom Hélder Câmara, foi sequestrado, torturado e morto no Recife; frei Tito de Alencar Lima suicidou-se na França em consequência das torturas sofridas no Brasil; o padre João Bosco Penido Burnier foi assassinado por um soldado da polícia militar, quando acompanhava o bispo Dom Pedro Casaldáliga à cadeia de Ribeirão Bonito, Mato Grosso, para defender duas mulheres que estavam sendo torturadas. São apenas alguns exemplos, entre tantos outros, do testemunho cristão de religiosos e leigos, operários e camponeses.

Acompanhando o relato do padre josé O. Beozzo sobre a atuação da Igreja em várias regiões brasileiras:

“No Nordeste, a crítica da Igreja dirigiu-se às condições de miséria da população, agravada pela industrialização forçada e o descaso do campo, à concentração da renda e aos desequilíbrios regionais. No Centro-Oeste, a crítica voltou-se mais à ocupação das terras por multinacionais e pelos empresários do Sul, com expulsão de posseiros, exploração de peões e massacre de indígenas.

O CIMI (Conselho Indigenista Missionário, 1973) veio dar grande alento a essa luta pelo índio, pela sua cultura e sobretudo por sua terra, como pressuposto de sua sobrevivência. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) estendeu a luta do CIMI pelas terras indígenas à luta por um pedaço de chão por parte de todos os deserdados da terra: camponeses e posseiros, boias-frias, peões e favelados das cidades.

Em São Paulo, a ação da Igreja destacou-se pelo dinamismo de sua Comissão de Justiça e Paz, sua posição firme contra as torturas em favor dos direitos humanos, a mobilização da periferia e sua ação em comum com intelectuais, imprensa, universidade e sindicatos para uma mudança do a regime vigente e a conquista da participação popular dentro de um Estado de pleno direito. A partir de 1977, a questão dos trabalhadores e seus direitos, nos conflitos e greves no ABC, encontraram uma Igreja aberta e solidária com a classe operária e com sua luta”. (Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns)

A essa reflexão sobre a prática do povo oprimido, iluminada pela doutrina da Igreja e pela Sagrada Escritura, chamou-se “Teologia da Libertação”. No Brasil, essa corrente teológica foi defendida e aplicada, entre outros, por frei Leonardo Boff, cujo livro Igreja: carisma e poder, provocou forte discussão.

No segundo semestre de 1984 o próprio Vaticano entrou na discussão, tornando públicas suas discordâncias em relação à Teologia da Libertação, através de um documento da Sagrada Congregação para a Doutrina da fé e chamando frei Boff a Roma para discutir o assunto.

As comunidades eclesiais de base

O movimento mais importante dessa Igreja voltada para os pobres é o das comunidades eclesiais de base (CEBs). Elas “são pequenos grupos organizados em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos. As primeiras surgiram por volta de 1960, em Nísia Floresta, arquidiocese de Natal, segundo alguns pesquisadores, ou em Volta Redonda, segundo outros. De natureza religiosa e caráter pastoral, as CEBs podem ter dez, vinte ou cinquenta membros. Nas paróquias de periferias, as comunidades podiam estar distribuídas em pequenos grupos ou formar um único grupão a que se dá o nome de comunidade eclesial de base. É o caso da zona rural, onde cem ou duzentas pessoas se reúnem numa capela aos domingos para celebrar o culto.

São comunidades, porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertence à mesma Igreja e moravam na mesma região. Motivadas pela fé, essas pessoas vivem uma comum-união em torno de seus problemas de sobrevivência, de moradia, de lutas por melhores condições de vida e de anseios e esperanças libertadoras. São eclesiais, porque congregadas na Igreja, como núcleos básicos de comunidade de fé. São de base, porque integradas por pessoas que trabalham com as próprias mãos (classes populares): donas-de-casa, operários, subempregados, aposentados, jovens e empregados dos setores de serviço, na periferia urbana; na zona rural, assalariados agrícolas, posseiros, pequenos proprietários, arrendatários, peões e seus familiares.”  (Frei Beto)

As CEBs, porém, não acabaram. Elas continuam se deixando conduzir pelo espírito do Concílio, agora renovado por Francisco. É claro que há muitos bispos e padres que ainda preferem aliar-se aos interesses dos poderosos, sem dar o devido valor aos grandes problemas que afligem o povo. Ainda há na Igreja estruturas e preconceitos que devem ser superados. No entanto, deve-se reconhecer que a Igreja avançou em direção ao povo, para caminhar junto com ele e partilhar a sua sorte.

Fonte: Nelson Piletti – História do Brasil; Ática

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