sexta-feira, 20 de maio de 2022

DERMEVAL SAVIANI

Dermeval Saviani, nascido em Santo Antônio de Posse –SP, em 03/02/44 (de direito, pois de fato nasceu em 25/12/43). Filho de trabalhadores e neto de imigrantes italianos. Concluiu o Curso primário, em 1954, em São Paulo e em 1959, o Curso ginasial no Seminário Nossa Senhora da Conceição, em Cuiabá.
    Estudou no Seminário maior de Aparecida, em SP, onde concluiu em 1962 o Curso Colegial. Graduado em Filosofia pela PUC/SP (1966) e doutorado em Filosofia da Educação pela PUC/SP (1971). Nesta época, devido à renúncia de Jânio Quadros em 1961 e com a mudança da forma de governo (de parlamentarismo para presidencialismo) ocorreram várias mudanças na sociedade que influenciaram também a Igreja, que neste contexto estava preocupada com a transformação da estrutura social. Era o período da Igreja Popular, que buscava a aproximação do povo com a religião. Saviani fez parte do movimento JOC - juventude Operária Católica se envolvendo com todas essas transformações que estavam acontecendo.


Dermeval Saviani

    Continuou os estudos de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento da PUC/SP, que era um reduto de estudantes burgueses. Trabalhava, nesta época, no Banco Bandeirantes e concluiu seu curso de Filosofia, em 1966, tendo vivenciado profundas mudanças na sociedade, causadas pelo Golpe Militar em 1964.
    Deixou o Banco e foi lecionar Filosofia em escola pública. Por volta de 1966 passou a trabalhar em um órgão da Secretaria de Educação de São Paulo. Em 1970 foi lecionar na recém criada Universidade Federal de São Carlos onde ajudou a implantar, em 1976 o Mestrado em Educação, em convênio com a Fundação Carlos Chagas.
    Desde 1967, é professor de graduação e pós-graduação no ensino superior. Livre-Docente em 1986; Professor Adjunto (1990) e Titular (1993) de História da Educação na Unicamp. Atualmente é pesquisador e professor aposentado e emérito da Unicamp e titular colaborador da Unicamp. Coordenou o Grupo de Pesquisa História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR).
    Dermeval Saviani realizou estágio sênior (pós-doutorado) nas universidades italianas de Pádua, Bolonha, Ferrara e Florença, em 1994 a De 1967 a 1970, lecionou filosofia, história, história da arte e história e filosofia da educação nos cursos colegial e normal. Autor de 15 livros, 33 capítulos de livros, 38 prefácios de livros e 130 artigos em revistas nacionais e internacionais, orientou 37 dissertações de mestrado e 47 teses de doutorado, concluindo 17 projetos de pesquisa.
    Dermeval Saviani atuou como: membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo coordenador do Comitê de Educação do CNPq, coordenador de pós-graduação na UFSCar, na PUC-SP e na Unicamp e diretor-associado da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Condecorado com a medalha do mérito educacional do Ministério da Educação.
    Concluiu em 1971 o Doutorado, na área de Ciências Humanas: Filosofia da Educação, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Bento, da PUC/SP. Em 1978 retornou como professor da PUC/SP e ajudou a criar o Doutorado em Educação nesta Instituição.
    Em 1979 ajudou a criar a ANDE – Associação Nacional de Educação. Foi o fundador da ANPED e do CEDES.

    Em 1988 participou da elaboração de um anteprojeto da LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Em 1988 coordenou o programa de pós-graduação da UNICAMP.
    Dermeval Saviani sempre defendeu de forma sistemática e intransigente a escola pública e preocupou-se com o alcance político da ação pedagógica enquanto estratégia de construção da contra-ideologia, sem, no entanto, confundir esta ação com uma ação propriamente política.
    Com a apresentação da Pedagogia Histórico-Crítica Saviani almeja encontrar o ponto correto da vara, ou seja, o ponto que não está curvo para o lado da Pedagogia Nova, mas que também não está curvo para o lado da Pedagogia Tradicional. Está justamente nas teorias e métodos que valorizem e fundamentem a prática educativa, no sentido de favorecer as transformações sociais.

O método

    O método preconizado por Saviani situa-se além dos métodos tradicionais e novos e, conforme esse autor, “deriva de uma concepção que articula educação e sociedade, e parte da constatação de que a sociedade em que vivemos é dividida em classes com interesses opostos”. Ao invés de passos, Saviani preferiu falar de momentos que caracterizam esse método, sendo que esses momentos devem ser articulados em um movimento único, cuja duração de cada um deles deve variar de acordo com as situações específicas que envolvem a prática pedagógica. O primeiro momento ou o ponto de partida do ensino é a prática social que é comum a professores e alunos embora do ponto de vista pedagógico professores e alunos possam apresentar diferentes níveis de conhecimento e experiência desta prática social. O segundo momento é a problematização e tem como objetivo identificar que questões precisam ser resolvidas dentro da prática social e que conhecimentos é preciso dominar para resolver estes problemas. O terceiro momento é a instrumentalização, ou seja, apropriação dos instrumentos teóricos e práticos necessários à solução dos problemas identificados, que depende da transmissão dos conhecimentos do professor para que essa apropriação aconteça já que esses instrumentos são produzidos socialmente e preservados historicamente. O quarto momento é a catarse que é a efetiva incorporação dos instrumentos culturais e a forma elaborada de entender a transformação social. O quinto e último momento é a prática social definida agora como ponto de chegada em que os alunos atingem uma compreensão que supostamente já se encontrava o professor no ponto de partida. A prática social neste sentido é alterada qualitativamente pela mediação da ação pedagógica.

    Diante dessa transformação Saviani (1985, p. 76) se refere à educação como sendo “uma atividade que supõe uma heterogeneidade real e uma homogeneidade possível; uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada”.

    Dermeval Saviani tem seu nome consagrado entre os pensadores que, comprometidos com a luta pela democracia, dedica ou dedicaram parte de suas vidas em prol da educação, pois consideram-na como um instrumento de mudança social e transformação da realidade. Tem sido, também, objeto de críticas, o que é compreensível em um espaço acadêmico, com uma multiplicidade de leitores que conseguiu ao longo dos anos dedicados à causa educacional.

Trecho descrito, Fonte:
DERMEVAL SAVIANI: Notas para uma releitura da Pedagogia Histórico-Crítica
Maria de Lourdes Ribeiro
Margarita Victoria Rodríguez
UNIUBE / MG

“Mesmo diante das problematizações da obra, na tentativa de compreendê-la, não há como ignorar a grande contribuição de Dermeval Saviani para os Programas de Pós-Graduação no Brasil e o contributo da obra “Histórias das ideias pedagógicas” para os cursos de formação de professores. Não se desconsidera que essa afirmação possa ser interpretada por alguns como o problema do “terreno do consenso” existentes nos Programas de Pós-Graduação do Brasil, já que até mesmo o mais contundente de seus críticos, o outrora orientando de Saviani, Ghiraldelli Jr, admite a pertinência da obra.

A grande aceitação e repercussão da atuação, das produções e das publicações de Saviani se expressa no fato de que, em 1995 recebe a medalha do Mérito Educacional do Ministério da Educação; em 1997 recebe o Prêmio Zeferino Vaz de Reconhecimento acadêmico pela produção científica realizada entre 1994 e 1997, na UNICAMP; em 2002 recebeu o título de professor emérito da UNICAMP; e em 2010 é agraciado com o título de pesquisador emérito do CNPq.

Nesse sentido, para compreender a escrita da História da Educação de Saviani se tem que analisar o motivo que o levou a se enveredar pelos caminhos da História da Educação. O autor afirma que: [...]o fator decisivo que me levou a enveredar pelos caminhos da História e da Historiografia foi a minha concepção de Filosofia. Como rapidamente evoluí em minha formação filosófica para a concepção dialética e, em seguida, mais especificamente para o materialismo histórico, a História se impôs como o território onde eu tinha de me mover necessariamente. (VIDAL, 2011, p. 31) Diante disso, é possível concluir que a obra “História das ideias pedagógicas no Brasil” tem a marca filosófica e marxista das opções ideológicas e teórico-metodológicas de Saviani. No entanto, é plausível afirmar que indubitavelmente Dermeval Saviani é um dos maiores intelectuais contemporâneos no Brasil. Não há como colocar em dúvida a grandeza de sua atuação enquanto escritor, filósofo, professor, pesquisador, educador e ativista pela História da Educação”.

Trecho descrito, Fonte:
Revista HISTEDBR On-line Artigo
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 57, p. 32-50, jun2014 – ISSN: 1676-2584 32
DERMEVAL SAVIANI E SUA “HISTÓRIA DAS IDEIAS PEDAGÓGICAS NO BRASIL”: EM BUSCA DA COMPREENSÃO DE UM AUTOR E DE UMA OBRA
Joseane de Fátima Machado Silva

Discurso proferido na Sessão Especial do Conselho Universitário, reunido em Assembleia Universitária para outorga do título de Professor Emérito da UNICAMP, no dia 15 de outubro de 2002.

PERCORRENDO CAMINHOS NA EDUCAÇÃO
DERMEVAL SAVIANI

RESUMO: Partindo da Lei das Escolas de Primeiras Letras, aprovada no Brasil em 15 de outubro de 1827, e traçando um paralelo com a Itália em torno das questões da emigração e do analfabetismo, o autor esboça a sua própria trajetória acadêmica e intelectual, de modo a concluir com o destaque da importância da escola como elemento estratégico para o desenvolvimento dos talentos representados pelas crianças e jovens, sem o que o próprio futuro do país fica comprometido.

Palavras-chave: Imigração e alfabetização. História da educação. Itinerário de professor. Escola e desenvolvimento intelectual.
                             TRACING PATHS IN EDUCATION

ABSTRACT: From the “Lei das Escolas de Primeiras Letras” (Educational Act for First Letters), approved in Brazil on October 15, 1827, and through a parallel with Italy, as for immigration and illiteracy issues, the author sketches out his own academic and intellectual itinerary. This is meant to highlight the importance of school as a strategic element to develop the talents lying dormant in children and youths, an essential prerequisite for the future of Brazil.

Key words: Immigration and teaching to read and write. Education history. Teacher itinerary. School and intellectual development.

Primeiramente queria agradecer a generosidade dos colegas de meu grupo de pesquisa, o HISTEDBR, de meu departamento, o DEFHE e de toda a Faculdade de Educação, assim como das instâncias institucionais da UNICAMP pela sequência de encaminhamentos que culminou com a aprovação da proposta de concessão do título de professor emérito pelo Conselho Universitário, no dia 30 de julho do corrente ano.

Quiseram as circunstâncias, ajudadas evidentemente pelo empenho da direção da Faculdade de Educação e pela boa vontade do magnífico reitor em ajustar a sua agenda, que o presente ato fosse marcado para este dia 15 de outubro, dia do professor. E, assim é, porque há 175 anos atrás, no dia 15 de outubro de 1827, era promulgada a primeira lei geral de ensino do Brasil independente.

Após a proclamação da independência política do Brasil, em 1822, instalou-se no ano seguinte a “Assembleia Constituinte e Legislativa”, que pretendeu equacionar o problema da organização nacional do ensino através de um projeto que procurava estimular o surgimento de um tratado completo de educação. Esse projeto, entretanto, não chegou a ser aprovado. Com a dissolução da Assembleia Constituinte, D. Pedro I outorgou, em 1824, a primeira Constituição do Império do Brasil, que se limitou a afirmar, no Inciso 32 do último artigo (179), do último Título (VIII), que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.

Reaberto o Parlamento em 1826, retoma-se a discussão do problema nacional da instrução pública, surgindo várias propostas, entre elas o projeto de Januário da Cunha Barbosa, que pretendia regular todo o arcabouço do ensino distribuído em quatro graus: o primeiro, denominado “Pedagogias”, abrangeria os conhecimentos elementares necessários a todos, independentemente da sua situação social ou profissão; o segundo, os “Liceus”, se voltaria para a formação profissional, compreendendo os conhecimentos relativos à agricultura, à arte e ao comércio; o terceiro, denominado “Ginásios”, compreenderia os conhecimentos científicos gerais, como introdução ao estudo aprofundado das ciências e de “todo gênero de erudição”; finalmente, o quarto grau, isto é, as “Academias”, se destinaria ao ensino das “ciências abstratas e de observação, consideradas em sua maior extensão e em todas as mais diversas relações com a ordem social, compreendendo-se além disso o estudo das ciências morais e políticas, contempladas debaixo do mesmo ponto de vista”, como reza o artigo 5º do projeto (Annaes do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Deputados, 1826, tomo II, sessão de 16 de junho de 1826, p. 150-160, apud Xavier, 1990, p. 39). Na sequência, o projeto detalhava as finalidades e o conteúdo da cada grau de ensino.

Essa proposta nem chegou a entrar em discussão. Em lugar de ideias mais ambiciosas, a Câmara dos Deputados preferiu ater-se a um modesto projeto limitado à escola elementar, o qual resultou na Lei de 15 de outubro de 1827 que determinava a criação de “escolas de primeiras letras”. A lei estabelecia, ainda, que nessas escolas os professores ensinariam “a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica e apostólica romana proporcionadas à compreensão dos meninos”. A referida lei, se tivesse viabilizado, de fato, a instalação de escolas elementares “em todas as cidades, vilas e lugares populosos” como se propunha, teria dado origem a um sistema nacional de instrução pública. Entretanto, isso não aconteceu. Em 1834, por força da aprovação do Ato Adicional à Constituição do Império, o governo central se desobrigou de cuidar das escolas primárias e secundárias, transferindo essa incumbência para os governos provinciais. Conforme o testemunho de José Ricardo Pires de Almeida, as Assembleias Provinciais procuraram logo fazer uso das novas prerrogativas votando “uma multidão de leis incoerentes”

(Almeida, 1989, p. 64) sobre instrução pública afastando-se, portanto, da ideia de sistema. A oferta de escolas, no Brasil, iria continuar rarefeita ainda por muitos anos.

Enquanto isso, o mundo se transformava e, em consequência, também o Brasil. Marx, em carta a Engels, datada de 8 de outubro de 1858, dizia que “a verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial, pelo menos em suas grandes linhas, assim como uma produção condicionada pelo mercado mundial. Como a terra é redonda, essa missão parece acabada com a colonização da Califórnia e da Austrália, assim como a abertura do Japão e da China. Para nós, a questão difícil é esta: sobre o continente europeu, a revolução é iminente e ela toma um caráter socialista, mas não será ela abafada nesse pequeno canto, já que, sobre um terreno muito mais vasto, o movimento da sociedade burguesa é ainda ascendente?” (Marx & Engels, 1973, p. 15).

A crise europeia parecia sem saída, conforme testemunha Eça de Queiroz em artigo de 1888: “Não sei o que aí se passa nessa viçosa América. Mas aqui neste ressequido continente, há já mais de dois anos, aqueles que se distinguem por conhecer as coisas das nações recomeçam a inquietar-se e a gritar sombriamente: a situação da Europa é medonha. Sob as crises que a sacodem, já a máquina se desconjunta. Nada pode suster o incomparável desastre. Este fim de século é um fim de mundo!” (Queiroz, apud Machado, 1999, p. 29-30).

Mas a crise, que parecia sem saída, encontra uma válvula de escape no movimento imigratória, como constata o próprio Eça de Queiroz: “Para o proletariado a emigração é a solução material da miséria, para o Estado é o remédio do pauperismo! Poucos governos hão, com efeito, na Europa, que não se tenham valido da emigração como um paliativo, indireto, mas eficaz, à densidade de população, aos acréscimos da miséria, às crises industriais” (idem, ibid., p. 31).

Assim, a partir do terceiro quartel do século XIX, uma onda imigratória se desloca da Europa para o Brasil, proveniente de diversos países, com destaque para a Itália.

A Itália consumara seu processo de unificação em 1861, sob a liderança do Piemonte. Em consequência, a “Lei Casati”, aprovada no Piemonte em 1859, é estendida a todo o país. Esta lei, marco decisivo da história da instrução pública italiana, é estruturada em cinco capítulos com 380 artigos, sendo que apenas o último capítulo trata brevemente do ensino elementar (De Vivo, 1994, p. 19). A escola primária permanece ainda fora da alçada do governo central, devendo ser mantida pelos municípios que, como no Brasil, não dispunham dos fundos necessários. Mas, ao longo da segunda metade do século XIX, desenvolve-se uma ampla campanha pela avocação do ensino primário ao Estado nacional, movimento esse que se torna vitorioso em 1911 com a reforma Daneo-Credaro, a partir da qual se dá o processo de instalação do sistema nacional de ensino que conduzirá à universalização da escola elementar e à erradicação do analfabetismo (Ravaglioli, 1990, vol. 3, p. 144). Mas, até a virada do século XIX para o XX, a Itália vivia uma situação contraditória, tendo metade de sua população analfabeta e excesso de pessoal formado em nível superior, o que levou Ernesto Nathan a escrever em 1906: “Em relação à nossa posição social somos muito cultos e muito ignorantes, de um lado atormentados pelo analfabetismo, de outro pelo universitarismo” (Barbagli, 1974, p. 29).

A posição conservadora procurava impedir o avanço da escola popular. A Revista Civiltà Cattolica em 1872 considerava estranho afirmar que a instrução fosse meio indispensável ao bem-estar dos homens. Dizia: “meio seguríssimo de bem-estar material é o trabalho e a ausência de vícios. Ora, ao trabalho se requerem braços, não o alfabeto e do bom costume cuida a boa educação paterna e a instrução religiosa” (Catarsi, 1985, p. 20). Mas essa posição reacionária não era privilégio dos católicos. Um Congresso de grandes proprietários reunido no final do século XIX na Sicília “teve a coragem de propor, para toda reforma, a abolição da instrução elementar, para que os camponeses e os mineiros não pudessem, lendo, absorver as novas ideias” (idem, ibid., p. 31).

Inversamente, porém, o movimento migratório se converteu numa fonte de experiências e de pressões contra o analfabetismo na Itália. A pressão dos países de imigração, em especial os Estados Unidos, conduziu o governo a medidas favoráveis à expansão escolar. E a própria experiência da emigração exerceu influxo positivo junto à população em direção às escolas: “Não sei ler, mas mando os meus filhos à escola porque me parece bom que aprendam a ler; e os mando também por conselho e empenho particular de meu marido”, afirmava uma camponesa cujo marido estava trabalhando na Argentina (idem, ibid., p. 42). E os emigrantes que retornavam se convertiam em arautos da propaganda contra o analfabetismo.

Assim, a maioria dos emigrantes que deixava a Itália era composta de analfabetos que, não tendo possibilidade de trabalho no velho mundo, decidiam partir para “fazer a América”. E se apinhavam nos navios cujos comandantes os deixavam nas costas brasileiras dizendo: chegamos; a América é aqui. Foi dessa forma que Antonio Saviani deixou Treviso na região do Vêneto, tendo encontrado Maria Clementina Pansani, também originária do Norte da Itália, com quem se casou em Mogi Guaçu no dia 19 de setembro de 1908. Desse casamento nasceu, no ano seguinte, em 25 de agosto de 1909, Júlio Saviani, meu pai, filho mais velho de 12 irmãos. Do outro lado da península, do Sul da Itália, saiu da Calábria Antonio Polimeno, que se casou com Carmela Mamelli, que viera da Sardenha. Desse casamento nasceu, em Jacutinga, no Sul de Minas Gerais, aos 24 de setembro de 1911, Sebastiana Polimeno, minha mãe, filha mais velha de 10 irmãos.

Recorde-se que em 1911, ano em que Sebastiana nasceu, era instituída na Itália a reforma Daneo-Credaro, que colocou a escola primária sob a égide do Estado nacional. Mas aqui no Brasil continuavam raras as escolas e, assim, nem ela nem Júlio chegaram a frequentar, por um dia sequer, os bancos escolares. Ambos descendiam dos imigrantes que aqui vieram para substituir a mão-de-obra escrava nas fazendas de café. E, transitando pelas terras cafeeiras do Oeste paulista, suas vidas se cruzaram e vieram a se casar no dia 9 de novembro de 1929, em Itapira (SP). Desse casamento nasceu, em 30/8/1930, a primeira filha, Deolinda, que não sobreviveu aos doze meses de vida, seguida de Alice, nascida em 12 de maio de 1932, Ivany, de 7 de junho de 1934, e Hermógenes, de 5 de maio de 1937, todos nascidos em fazendas do município de Itapira. O quinto filho, Adamastor, de 12/11/1939, viveu apenas dez meses. O sexto veio a se chamar Adivaldo, que nasceu no dia 26 de dezembro de 1941, sendo seguido por mim, Dermeval, de 25 de dezembro de 1943, e de Eduviges, de 9 de fevereiro de 1946. Nós três nascemos na fazenda Santo Antonio, situada no hoje Santo Antonio de Posse, que à época se chamava Posse de Ressaca e pertencia à Comarca de Mogi Mirim. Ainda no interior de São Paulo, mas já na fazenda São Pedro no município de Amparo, nasceria Nereide, a penúltima filha, no dia 13 de novembro de 1947.

Meu pai não frequentou a escola, mas com a ajuda de meu avô, se alfabetizou e ganhou grande gosto pela leitura. Lia tudo o que lhe caía diante dos olhos: jornais, rótulos, fascículos, romances de folhetim. Com isso atingiu um bom domínio do alfabeto, o que lhe permitiu alfabetizar outras pessoas, inclusive minha mãe. Após a extenuante jornada de trabalho na roça, ele reunia aqueles que desejavam aprender a ler e escrever e passava-lhes o que sabia. Era, também, o sanfoneiro do arraial. Através de parentes residentes em São Paulo encomendava partituras que ensaiava à noitinha para poder tocar as novidades do momento nos bailes dos fins de semana nas redondezas.

Com isso, ganhava um dinheirinho que servia, no final do ano, para completar a conta do armazém. Com efeito, sabe-se que o regime de trabalho então generalizado nas fazendas adotava a forma do pagamento anual, obrigando-se o colono a abastecer-se no armazém da própria fazenda. Ao final do ano, feitas as contas, era comum o agricultor, após ter trabalhado o ano todo de sol a sol, estar ainda com saldo devedor, tal era o grau de exploração da sua força de trabalho. O ofício de sanfoneiro vinha, então, em socorro do camponês. Meus irmãos mais velhos também desenvolveram o veio musical, mas se inclinaram mais para o violão.

Guardo poucas lembranças dessa fase, sem conseguir distinguir com clareza aquelas que teriam decorrido da vivência pessoal e aquelas que se relacionavam com os relatos dos pais e irmãos mais velhos. Além de alguns fatos pitorescos, ficaram gravadas as doenças de infância, o desespero de minha mãe diante da ameaça de mortalidade infantil (ela perdeu a primeira filha e também aquele que seria o quinto) e a situação de penúria (lembro-me que saíamos à margem da estrada de ferro catando serralha para compor a alimentação familiar). Meus três irmãos mais velhos só estudaram até o terceiro primário porque nas escolas rurais da época não havia o primário completo. O máximo que se podia atingir era o terceiro ano.

Em conversas de família surpreendi, às vezes, meu pai afirmando que as coisas iam relativamente bem até 1929, quando se casou. E comentava: foi só eu me casar e as coisas começaram a degringolar. Mas não se tratava de mera coincidência. 1929 foi o ano da grande crise do capitalismo expressa na quebra da bolsa de Nova Iorque, que repercutiu fortemente na economia brasileira baseada na monocultura do café, que passou por uma séria crise de superprodução.

Nesse contexto, em outubro de 1948, as dificuldades da vida da roça que impossibilitavam a sobrevivência de uma família composta de casal e sete filhos (o último, de nome Antonio, nasceria depois, já em São Paulo, em 30 de março de 1950) forçaram meu pai a se transferir com a família para a capital, São Paulo, onde se empregou como foguista de caldeira na indústria. O mesmo caminho foi seguido pelos irmãos mais velhos que também se tornaram operários nas fábricas da Capital.

Fiz o curso primário no Grupo Escolar de Vila Invernada, à época (1951-1954) um galpão de madeira na periferia de São Paulo. Pedagogicamente era uma escola tipicamente tradicional. Já não havia mais a palmatória, mas a régua, às vezes, desempenhava a mesma função. O diretor era uma figura temida. Os exames finais de cada série eram feitos na própria escola, mas não era a professora que formulava as questões e as aplicava. Esses exames eram feitos perante o inspetor do Estado.

Iniciei o curso de admissão ao ginásio em 1955, na Paróquia de São Pio X e Santa Luzia, de Vila Leme, ainda em São Paulo, mas em 27 de setembro do mesmo ano, segui com o vigário da referida paróquia para Cuiabá. Ali prestei exames de admissão ao ginásio no Liceu Salesiano São Gonçalo.

O curso ginasial foi feito no Seminário Nossa Senhora da Conceição, de Cuiabá, entre 1956 e 1959.

O primeiro ano colegial foi feito em 1960, no Seminário do Coração Eucarístico de Campo Grande, hoje capital do estado de Mato Grosso do Sul. Em 1961, de novo no Seminário Nossa Senhora da Conceição de Cuiabá, cursei o segundo ano que era também o último ano do Seminário Menor.

Em 1962, ingressei no Seminário Maior cujos estudos filosóficos iniciei no Seminário Central de Aparecida do Norte, estado de São Paulo. Aí cursei dois anos de filosofia, sendo que o segundo ano coincidiu com o primeiro ano de faculdade em decorrência do vestibular que prestei na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, em fevereiro de 1963. Isto foi possível em decorrência de um convênio entre a Faculdade Salesiana de Lorena e o Seminário Central Filosófico de Aparecida do Norte, mediante o qual o curso de

Filosofia de Aparecida passava a funcionar como uma secção da Faculdade de Lorena, desde que, obviamente, os alunos interessados em cursar a Faculdade fossem aprovados nos exames vestibulares realizados em Lorena.

Registro que, quando me encontrava no seminário, ao cogitar da hipótese de retornar para casa, nunca me imaginava seguindo estudos em nível superior. Eu me via saindo de manhã com a marmita debaixo do braço, pegando o ônibus e me dirigindo à fábrica para trabalhar, tal como faziam meus irmãos mais velhos. Universidade era uma coisa que nem remotamente fazia parte de meu universo familiar. A ideia que prevalecia era a de que estudo, de modo especial os de nível superior, não era coisa para pobres. Contudo, quando deixei o seminário minha situação era inteiramente outra. Eu já havia sido aprovado no vestibular e me via diante do seguinte desafio: provar que pobre também podia ter êxito na universidade; por que não? Com essa ideia decidi que iria insistir em encontrar um trabalho no período da manhã de modo a não abrir mão, em nenhuma hipótese, do curso de filosofia que funcionava no período da tarde.

Em 1964, voltei a morar em São Paulo, onde residia minha família. Solicitei, então, transferência para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Como eu não podia estudar sem trabalhar, procurei emprego em banco. Mas não foi fácil. Fazia testes que eram aprovados, mas a resposta invariável era: só temos vagas para o período da tarde. Depois de várias tentativas e lançando mão de meu poder de argumentação, consegui convencer o gerente da seção de câmbio do Banco Bandeirantes do Comércio a me admitir no horário das 7:00 às 13:00 horas para fazer aquele mesmo trabalho que ele previa para a tarde, abrindo-lhe a possibilidade de que, no segundo semestre, eu poderia conseguir na universidade uma transferência para um outro período. Assim, finalmente, consegui o emprego. Já era o mês de maio. E as tarefas eram tantas que nas férias de julho eu trabalhava das 7 da manhã até às 20:30h e, nos dias de balanço, até a meia noite, ganhando horas extras. Desse modo, o gerente em nenhum momento veio me cobrar a mudança de horário. A remuneração, entretanto, era o salário mínimo. Dado que havia necessidade – e eu fazia questão – de ajudar na manutenção da casa e precisava também pagar os estudos, não sobrava para o almoço. Saía de casa às 5:30h e retornava para jantar por volta das 22:30h, uma vez que as aulas na Faculdade iam até às 20:00h (as disciplinas pedagógicas de licenciatura eram encaixadas no início do período noturno) e era preciso tomar duas conduções para ir da Universidade até minha casa. Em tais circunstâncias, quando foram abertas as inscrições para concurso no Banco do Estado de São Paulo, efetuei minha inscrição, prestei os exames e ingressei em 2 de dezembro de 1965. Com uma remuneração melhor foi possível minorar as dificuldades até então enfrentadas.

Sendo de uma família operária, eu vivia num bairro periférico de São Paulo. Assim, nesses conturbados anos da década de 1960, enquanto meu pai e meus irmãos participavam das greves nas fábricas e nas ruas, eu participava das assembleias e passeatas estudantis. Em 1966, meus irmãos participaram de um concurso de música popular promovido pela rádio Marconi, gravando em fita duas músicas compostas por um deles, o Hermógenes. Uma delas, que não foi apresentada porque censurada, se chamava Marcha da Liberdade ou Brasil com “s” e uma de suas estrofes dizia:

Camponeses, operários e estudantes. Nós lutamos por um mesmo ideal. Nós queremos ver um Brasil com “s” E muito mais nacional.

Vê-se que a letra dessa música espelha bem o momento político, assim como a situação concreta vivida pela minha família. Com efeito, éramos uma família operária, mas de origem camponesa, como já foi assinalado. A aliança operário-estudantil-camponesa, tão bem retratada na música de meu irmão, refletia, então, uma bandeira das esquerdas e, ao mesmo tempo, correspondia à situação em que vivíamos.

Ao longo do curso de filosofia, procurei aliar a militância estudantil com o estudo sério das disciplinas que integravam o currículo. Apresentei, então, nas diferentes matérias como Ética, Estética, Filosofia da História, Filosofia do Desenvolvimento, Filosofia da Religião, História da Filosofia, Sociologia, Economia Política, trabalhos com alguma densidade de reflexão própria.

Antes de eu iniciar o quarto ano, o Prof. Joel Martins, que lecionava Psicologia Educacional no Curso de Pedagogia e, como membro do Departamento de Pedagogia estava preocupado com a carência de professores de Filosofia da Educação, me indagou se eu não gostaria de me especializar em Filosofia da Educação. Estava ele preocupado com o fato de que a cadeira, que estava sendo ministrada pelo Prof. Stanley Krauss, iria vagar em julho porque o referido professor voltaria ao seu país, os Estados Unidos. Dado o meu interesse, o Prof. Joel me propôs um plano de estudos e eu, de minha parte, tomei a iniciativa de me matricular, ainda que como ouvinte dado que era aluno de Filosofia, numa das opções do quarto ano de Pedagogia chamada “Questões Especiais de Educação”. Numa de minhas conversas com o Prof. Joel, sobre o plano de estudos que estava seguindo, disse-lhe que às vezes me ocorria a forma em que eu daria um curso de Filosofia da Educação. Ele solicitou-me que colocasse no papel e lhe mostrasse. Apresentei-lhe, então, um plano de curso que ele considerou muito bom. E quando, de fato, em julho de 1966, a cadeira de Filosofia da Educação ficou vaga no Curso de Pedagogia, o Prof. Joel a assumiu interinamente e me indicou como monitor. A disciplina tinha uma carga horária de quatro aulas semanais das quais ele me destinou duas aulas. Quando lhe perguntei o que eu deveria fazer naquelas aulas, ele me respondeu: “vá desenvolvendo o seu plano”.

Passei, então, a trabalhar aquele plano de curso com os alunos do terceiro ano de pedagogia. Foi assim que completei o meu 4º ano de Filosofia, já me iniciando no magistério de Filosofia da Educação. Em tom de humor eu dizia, às vezes, que eu fora uma espécie de monitor regente, pois era ainda aluno, mas já desenvolvia um programa próprio que, aliás, foi, no ano seguinte, encaminhado ao MEC como a programação da disciplina Filosofia da Educação para efeitos do reconhecimento do Curso de Pedagogia da PUC-SP.

A partir de 1967, iniciei oficialmente minha atividade docente simultaneamente no curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e no Ensino Médio, no Colégio Estadual de São João Clímaco, depois denominado Colégio Estadual Prof. Ataliba de Oliveira e, no segundo semestre do mesmo ano, no Curso Normal do Colégio Sion. Nesse ano, em razão do pequeno número de aulas, tive que manter o trabalho no Banco do Estado de São Paulo, por uma questão de sobrevivência. Em 1968, aumentadas as aulas, demiti-me do Banco para me dedicar integralmente ao magistério. Em 1970, em consequência de aprovação em concurso público, assumi, como efetivo, a cadeira de Filosofia do Colégio e Escola Normal Estadual “Plínio Barreto”, em São Paulo, Capital.

Iniciei a carreira de professor com muito entusiasmo e dedicação. Especialmente no nível universitário, eu considerava que o professor não poderia ser apenas um repetidor, um transmissor de conhecimentos já compendiados; ele deveria ser também e, sobretudo, um pesquisador, um criador, alguém que se posicionasse ativamente em relação à sua área, tendo condições de contribuir para o seu desenvolvimento.

Em consequência, passei a produzir eu próprio aquilo que chamei de “textos de apoio para seminários”, a partir dos quais se desenvolviam as aulas, estimulando-se o trabalho intelectual e a reflexão crítica dos alunos.

Paralelamente às atividades docentes, iniciei formalmente, a partir de fevereiro de 1968, as pesquisas relativas ao doutoramento, pesquisas essas que resultaram na tese “O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, defendida em 18 de novembro de 1971 e publicada em livro com o título Educação brasileira: estrutura e sistema, em 1973.

A partir de 1972, passei a trabalhar também na Pós-Graduação ministrando, em nível de mestrado, a disciplina “Problemas da Educação”, primeiramente no Instituto Educacional Piracicabano, que veio a se converter na Universidade Metodista de Piracicaba, a UNIMEP, no segundo semestre e, a partir de 1973, também na PUC-SP. Data daí, do segundo semestre de 1972, meu primeiro contato com a UNICAMP. A Faculdade de Educação estava sendo fundada e seu primeiro diretor, o Prof. Montezuma, convidou-nos para uma conversa. Alguns professores da UNICAMP estavam inscritos como nossos alunos no mestrado de Piracicaba: O professor José Dias Sobrinho e as professoras Rosália Aragão e Maria Inês Fini. À época, éramos quatro os professores da PUCSP que havíamos assumido o mestrado em Piracicaba: Newton Aquiles Von Zuben, Geraldo Tonaco, Antônio Joaquim Severino e eu. Em função dos nossos horários daquele ano na PUC-SP, os professores Aquiles Von Zuben e Geraldo Tonaco iam a Piracicaba às segundas e terçasfeiras. O Prof. Severino e eu íamos às sextas e sábados. Assim, numa sexta-feira, Severino e eu interrompemos nossa viagem de São Paulo para Piracicaba, fazendo uma parada em Campinas para termos um encontro com o Prof. Montezuma. Ele, com um certo ar messiânico, nos expôs por um bom tempo as ideias em torno da nova faculdade que estava surgindo. Não chegou a fazer uma proposta formal, deixando em aberto o caminho para novas conversas e eventual colaboração. De nossa parte, também não avançamos nenhuma proposta concreta. Saímos daquela reunião, Severino e eu, nos perguntando sobre os rumos que tomariam aquela iniciativa. As idéias eram ainda um tanto nebulosas e não havia também clareza sobre as condições reais em que a faculdade iria se apoiar. Demos seqüência ao nosso trabalho em Piracicaba, sendo que a partir de 1973 passamos a nos deslocar os quatro professores no início da semana, indo às segundas-feiras pela manhã e retornando a São Paulo nas terças à tarde.

Além dos professores da UNICAMP, um grupo ainda maior de professores da recém-fundada Universidade Federal de São Carlos também estava matriculado no mestrado do Instituto Educacional Piracicabano. Assim, acabei sendo assediado para atuar junto à UFSCAR. Dessa forma, enquanto o professor Aquiles, em 1974, se transferia para a UNICAMP, eu, a partir do segundo semestre de 1975, assumia um contrato em tempo integral na UFSCAR, onde acabei liderando a formulação de uma proposta inovadora de Pós-Graduação em convênio com a Fundação Carlos Chagas, assumindo a responsabilidade de implantar e coordenar o Programa. Tendo reassumido minhas funções em 1978 na PUC-SP, onde passei a coordenar o mestrado e doutorado em Filosofia da Educação, o Prof. Casemiro dos Reis Filho, que já se encontrava na UNICAMP, propôs que eu viesse para esta universidade. Respondi-lhe que eu me sentia cansado de estar viajando toda semana desde 1972 e que eu preferia ficar, por um tempo, apenas na PUC-SP. Ele, em todo o caso, solicitou-me uma cópia do curriculum vitae, argumentando que, caso aparecesse uma vaga no departamento, ele gostaria de propor o meu nome para eventual contrato posterior. E, de fato, no ano seguinte, 1979, me chegou a informação que o Departamento de Filosofia e História da Educação (DEFHE) da Faculdade de Educação da UNICAMP havia aprovado proposta de contratação. Em decorrência, em 1980, iniciei minhas atividades na UNICAMP, em regime de Turno Completo, o que me possibilitava compatibilizar as novas funções com a continuidade do trabalho que estava desenvolvendo na PUC-SP.

Se na PUC-SP a área dominante de minhas atividades de ensino e pesquisa era a filosofia da educação, na UNICAMP o foco se deslocou para a história da educação, dadas as peculiaridades do departamento que me acolheu. Assim, em 1986, embora já tivesse sido contratado como docente no nível MS-4, submeti-me ao concurso de livre docência em história da educação e, ainda que pudesse fazê-lo a partir da apresentação de minha produção científica posterior ao doutorado, preferi elaborar e submeter à defesa uma nova tese, tendo realizado a pesquisa “O Congresso Nacional e a educação brasileira: significado político da ação do Congresso Nacional no processo de elaboração das leis 4.024/61, 5.540/68 e 5.692/71” que, uma vez aprovada, deu origem ao livro Política e educação no Brasil: o papel do Congresso Nacional na legislação do ensino, cuja primeira edição data de 1987. A partir daí, diante dos reiterados convites para que eu passasse ao regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa, decidi responder afirmativamente. Em consequência, a partir e janeiro de 1989, desliguei-me da PUC-SP, mudei-me para Campinas e passei a manter vinculação exclusiva com a UNICAMP.

Eis que o menino pobre, filho de colonos que nunca haviam estudado numa escola, saído da vizinha Santo Antonio de Posse, depois de muitas peripécias e por meio de um longo “détour”, volta a esta região e tem seu nome ligado a uma grande universidade, uma das mais importantes do país.

Registro essa trajetória não para tirar a conclusão de que, dependendo do esforço de cada um, as oportunidades estão abertas para todos, como tenderia a concluir a concepção conservadora, de exaltação da ordem social vigente. Nem para considerar que se trata de uma exceção que confirma a regra que, necessariamente, tende a excluir todas as pessoas de origem humilde. Afastemos esse maniqueísmo. Penso que essa trajetória, como a de muitos outros filhos de origem camponesa ou operária, mostra a importância da escola e o verdadeiro crime de lesa-pátria que é a sua falta. Por isso, em uma entrevista concedida há dois anos atrás, ao responder a uma pergunta sobre as consequências sociais e afetivas da repetência, respondi que para as crianças e adolescentes, assim como para as suas famílias, a repetência – e agora posso acrescentar também a falta de escolas – configura, objetivamente, uma situação dramática. Utilizei o advérbio “objetivamente” porque, ainda que do ponto de vista subjetivo, se encontrem maneiras de conviver com essa situação racionalizando-a, por assim dizer, por meio de uma concepção traduzida em frases como “não dá para o estudo”, “não tem cabeça boa” etc., os reflexos na situação dessas famílias são muito sérios porque lhes retiram a expectativa de melhoria de vida o que significa, na prática, a cassação do seu futuro. Entretanto, para lá dos aspectos subjetivos e objetivos das famílias individualmente consideradas, os reflexos são da maior gravidade para o próprio país, tendo em vista a quantidade de talentos promissores que deixam de ser desenvolvidos. De fato, o país que não desenvolve as novas gerações, isto é, que não propicia à sua população de crianças e jovens uma formação adequada, está cassando o próprio futuro. O fato do Brasil ter adiado, desde a lei das escolas de primeiras letras, de 15 de outubro de 1827, vindo a ter uma outra lei nacional de ensino primário apenas em 1946 e ter adentrado o século XXI sem ainda ter conseguido universalizar o ensino fundamental, pode ser considerado como uma verdadeira cassação do futuro do país.

Minha vinculação à UNICAMP é carregada de simbologia. Em termos pessoais, porque foi aqui que conheci Maria Aparecida Dellinghausen Motta, filósofa e poeta de rara sensibilidade, a quem me liguei definitivamente em 1984 e que me deu Benjamim Motta Saviani, nascido em 12 de novembro de 1988, que é, de fato, aquilo que seu nome significa: filho da felicidade. E em termos intelectuais, profissionais e acadêmicos, porque meu vínculo com a UNICAMP expressa total coerência com a luta em defesa da escola pública que marcou e vem marcando toda a minha trajetória educativa. Minha própria atuação na PUC-SP, a partir da qual fui guindado, sem o buscar, à posição de liderança do movimento educacional, trazia fortemente essa marca. E a PUC-SP, apesar de não ser uma instituição pública, se revelou um espaço adequado a esse objetivo, especialmente no contexto da ditadura militar, quando as instituições públicas passaram por vários tipos de constrangimento. Mas é forçoso constatar que a plenitude da coerência entre meus propósitos e o espaço institucional de atuação veio a se configurar a partir do momento em que pude optar, de forma irrestrita, pela UNICAMP.

Assim, posso dizer que, avesso à busca de reconhecimento, tendo sempre encarado o trabalho que realizo como decorrente de um alto senso de responsabilidade perante a gente sofrida à qual me sinto ligado, perante a sociedade e perante o nosso país, não desejando e, menos ainda, buscando honrarias, se há um título que me faz feliz e que, devo confessar, no fundo eu desejei, é este que recebi da UNICAMP e que hoje está solene e publicamente me sendo outorgado.

Planos? Sim, muitos planos. Mas não vou enunciá-los de forma a permitir-lhes que me cobrem por eles a prazo certo.

Há planos imediatos, como a conclusão da pesquisa que desenvolvo com apoio do CNPq sobre a “História das idéias pedagógicas no Brasil”; o projeto “O espaço da pedagogia no Brasil: perspectiva histórica e teórica” que devo realizar de agora até setembro do próximo ano como colaboração para a consolidação do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Ribeirão Preto, da USP, instalado neste ano de 2002; um projeto específico, que deve durar cerca de três anos, sobre as máximas e provérbios em educação. Mas há os planos de vida que, estes, por serem ou muito mais simples ou de grande transcendência, vão sempre aguardando momentos mais propícios e perdendo espaço para os projetos mais suscetíveis às pressões institucionais ou das pessoas com as quais sou solidário em nosso pertencimento ao campo educacional. Entre os planos mais simples estão aqueles textos de apoio para seminários que organizei no início de minha carreira docente e cuja transformação em livros foi um projeto sempre adiado, mas nunca abandonado; igualmente os programas de disciplinas que ministrei e que também planejara transformar em livro. Entre os projetos mais recentes encontram-se reedições atualizadas de livros como Educação e questões da atualidade, publicado simultaneamente em português e espanhol em 1991, já há bastante tempo esgotado, o mesmo ocorrendo com Ensino público e algumas falas sobre universidade, cuja primeira edição é de 1984. Um outro livro que gostaria de publicar e que é relativamente fácil de viabilizar é o que eu chamaria de “Prefácio à educação brasileira”, em que, partindo dos cerca de quarenta prefácios que redigi para livros sobre educação, complementados pelas dissertações e teses orientadas, eu buscaria traçar a trajetória histórica da educação brasileira nos últimos

30 anos. Gostaria, ainda, de publicar em breve um livro que possivelmente se chamaria “O novo Plano Nacional de Educação comentado”, em que eu analisaria, capítulo por capítulo, o teor completo do texto do PNE, aprovado em 9 de janeiro de 2001 pelo Congresso Nacional e parcialmente vetado pelo presidente da República.

Entre os planos de grande transcendência, menciono dois. A ideia do primeiro deles me veio em decorrência de um convite. Em 1998 três colegas da UNESP, Rosa Fátima de Souza, Vera Teresa Valdemarin e Jane Soares de Almeida, publicaram um livro chamado O legado educacional do século XIX. No ano passado, Jane me falou sobre a intenção de se publicar, agora, um novo livro tratando do “Legado educacional do século XX” (Souza; Valdemarin; Almeida, 1998), convidando-me para participar do projeto. Enquanto eu pensava nessa ideia, tive contato com o livro de Thomas Hobbes (1990), Behemoth ou o longo parlamento. O livro é escrito na forma de diálogo entre uma pessoa jovem que formula as questões e uma pessoa mais velha que explica os acontecimentos. Daí me veio uma grande vontade de construir um livro tratando do legado educacional do século XX a partir de um diálogo com meu filho Benjamim, em que, aproveitando sua curiosidade e seu interesse pela história e pela genealogia, seriam formuladas as perguntas e eu iria discorrendo sobre a trajetória da educação no desenvolvimento da sociedade brasileira ao longo do último século. Com efeito, perpassam o século três gerações: meu pai nasceu no início, em 1909; eu me encontro na metade (1943-1944) e Benjamim nasceu no final do século, em 1988. Seria uma boa oportunidade de entrelaçarmos nossas vidas com os acontecimentos que cobriram todo o século XX.

Finalmente, está de pé o projeto de longo alcance que enunciei quando da publicação do livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, em 1991. Ali eu dizia no prefácio que a pedagogia histórico-crítica, proposta por mim, é uma teoria que está em processo de elaboração através de diferentes estudiosos. De minha parte, venho me dedicando a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com ritmo variável e sem prazo para sua conclusão, por meio da qual pretendo rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas, tendo como guia o conceito de “modo de produção”. Trata-se de explicitar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente. É um estudo que não se move sob o acicate das urgências imediatas de conjuntura, mas que se propõe a captar o movimento orgânico definidor do processo histórico; é, como diria Gramsci, uma tarefa “für ewig”, isto é, de caráter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretendo, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histórico-crítica de modo a viabilizar a configuração consistente do sistema educacional em seu conjunto sob o ponto de vista dessa concepção educacional.

Como se vê, não é necessário que se preocupem em me dar trabalho. De fato, com tantos projetos, com tantas idéias fervilhando, é impossível que eu pare de trabalhar. A conclusão a que chego é, pois, a seguinte: quanto mais me derem trabalho, quanto mais se multiplicam as solicitações, mais eu tenho que me ater aos projetos mais simples e de menor fôlego, postergando os mais importantes. Daí, o apelo: deixemme livre, reduzam suas expectativas, pois, desse modo, poderei me concentrar nos projetos de maior transcendência, cujos benefícios serão mais amplos e mais duradouros.

Agradeço a todos por esse momento de felicidade, mas, ao mesmo tempo, de grande responsabilidade. Ter o nome ligado à UNICAMP na figura do professor emérito traz, sem dúvida, prestígio. Mas ao bônus aí representado se liga indissoluvelmente o ônus de manter sempre dignificada essa vinculação. Por outro lado, sabemos que o prestígio da Instituição advém do trabalho das pessoas que nela atuam, em especial o seu corpo docente. Esperamos, então, que a UNICAMP também seja digna das pessoas que a construíram e que a vêm construindo, entre as quais me incluo. E a formulação dessa expectativa soa, mesmo, como um alerta nesses tempos particularmente difíceis para as universidades públicas que apresentam sinais visíveis de desagregação, parecendo navegar à deriva, como naus sem rumo atingidas pelos ventos da chamada diversificação de modelos, marca distintiva da atual política de ensino superior que está em curso em nosso país. Oxalá se encontrem, do interior da Instituição, forças suficientes para resistir a essa maré montante e restaurar o sentido clássico da universidade. Em verdade, como já disse em outro lugar, em matéria de educação é mister estarmos constantemente empenhados em superar a dicotomia entre tradicional e moderno, guiando-nos pelo critério do “clássico”, que consiste em encontrar nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as formas da prática universitária.

Muito obrigado a todos.

Recebido e aprovado em outubro de 2002

Referências bibliográficas

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CATARSI, E. L’educazione del popolo. Bergamo: Juvenilia, 1985.

DE VIVO, F. Linee di storia della scuola italiana. 4ª ed. Brescia: La Scuola, 1994.

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MACHADO, M.C.G. O projeto de Rui Barbosa: o papel da educação na modernização da sociedade. 1999. Tese (doutorado) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas.

MARX, K.; ENGELS, F. La guerra civil en los Estados Unidos (18611865). México: Roco, 1973.

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SOUZA, R.F.; VALDEMARIN, V.T.; ALMEIDA, J.S. O legado educacional do século XIX. Araraquara: Editora da UNESP, 1998.

XAVIER, M.E.S.P. Poder político e educação de elite. São Paulo:

Cortez, 1990.


PRODUÇÃO DE SABERES NA ESCOLA: SUSPEITAS E APOSTAS

  


José Carlos Libâneo*


O tema “produção de saberes na escola” pode referir-se ao aluno e aos processos de aprendizagem, ao professor que produz saberes sobre sua disciplina, sua profissão e sua experiência, e, também, a uma multiplicidade de saberes que intervêm e circulam na vida escolar. Ou seja, na escola se realiza uma atividade de produção de saberes, científicos ou não, sistematizados ou não, levada a cabo por professores e alunos. É sobre as práticas de produção de saberes que desejo fazer uma reflexão neste texto, formulando algumas suspeitas, mas também algumas apostas. O que tratarei aqui não são propriamente conclusões, mas pistas de investigação sobre o que vem sendo o papel da escola e dos professores na produção de saberes, na sua relação com o conhecimento. As escolas vêm produzindo saberes? Em que condições encontra-se a escola brasileira para produzir saberes? Que qualidade de saberes tem saído das escolas? O que os intelectuais do campo educacional vêm pensando sobre os saberes escolares? Como os saberes provenientes da pesquisa universitária afetam os saberes e as práticas dos professores? O que os professores que atuam diretamente nas escolas pensam sobre esses saberes? Os professores podem ir além dos seus saberes de experiência? Em que condições reais os professores estão produzindo saberes? Que saberes de professores ajudam a produzir saberes de alunos? Durante sua escolarização e quando a concluem, os alunos tornam-se preparados para produzir saberes?

As suspeitas

As suspeitas apontadas têm o sentido de dúvidas, pressentimentos, algo que se supõe com base em pesquisas e no que se observa na realidade mas sem caráter conclusivo e sem garantias de certezas. O que estaria acontecendo com a produção de saberes na escola?

1. Quanto mais se fala em qualidade de ensino, tanto na linguagem oficial quanto na linguagem dos educadores e da crítica, mais parece se ampliar a fragilidade das aprendizagens, mais se perde a qualidade cognitiva das aprendizagens. Dizendo de outra maneira, quanto mais se adotam novidades organizacionais, pedagógicas, curriculares, mais parece estar se perdendo o sentido dos objetivos prioritários da escola. É claro que critérios de qualidade de ensino e aprendizagem são discutíveis. Entretanto, captando a realidade pelos resultados escolares através de relatórios de pesquisa ou da imprensa ou pela observação direta do que acontece dentro das escolas, o que vemos são crianças e jovens concluindo as várias fases da escolarização sem uma mudança perceptível na qualidade das aprendizagens escolares, na formação geral. A se considerar com boa vontade os dados do SAEB, do ENEM, do desempenho dos candidatos nos vestibulares, a se prestar mais atenção no que reproduz a imprensa, ninguém se surpreenderá com a afirmação de que o ensino brasileiro continua com um baixo nível de qualidade. A questão crucial é recorrente: quem perde, quem ganha com a baixa qualidade da escolarização?

Recente reportagem da revista Isto É (2000) traz o seguinte título: “Ensino Reprovado - Sem repetência, alunos de escolas públicas chegam até a 6a série sem saber ler, escrever nem fazer as quatro operações”. A matéria informa que alunos entre 11 e 15 anos, matriculados na 4ª, 5ª séries em escolas da periferia da cidade de S.Paulo, não sabem ler, não sabem escrever, não sabem fazer contas. Será sensacionalismo, atitude pessimista, mania de ver o pior em tudo? Pode ser, mas quem se der ao trabalho de visitar escolas poderá encontrar relatos parecidos com o da reportagem. Não se pode tirar daí a conclusão de que a culpa pelo baixo nível de ensino seja exclusivamente dos professores, há um conjunto complexo de fatores a serem considerados desde as condições de trabalho, remuneração e formação às políticas escolares mais amplas. Conviria perguntar, por exemplo, pelos efeitos de medidas organizacionais do sistema de ensino tais como a intervenção na estrutura física das redes, os reordenamentos de estruturas de gestão, a substituição da seriação pelos ciclos de escolarização, a flexibilização das práticas de avaliação da aprendizagem, a difusão de teorias e práticas pedagógicas com precário vínculo com as necessidades e demandas da realidade escolar. Em relação aos ciclos, não será temerária a adoção de medidas aparentemente inovadoras sabendo que requerem condições que os sistemas de ensino não são capazes de cumprir? E o que dizer da flexibilização da avaliação escolar que, em nome da relativização ou eliminação de controles, dissolve-se também o necessário rigor na verificação da qualidade das aprendizagens? E o que tem sido feito em relação ao tempo de trabalho dos professores? Em que condições se fazem as recuperações? O que, de fato, tem sido feito quanto à formação continuada dos professores para incorporarem as inovações? De que vale a promoção automática se a qualidade das aprendizagens cai? E uma outra pergunta incômoda: se o sistema de ciclos é tão boa solução pedagógica, por que as escolas particulares não o adotaram?[1]

2. A qualidade das aprendizagens dos alunos depende da qualidade do desempenho profissional dos professores e essa qualidade, no geral, tem sido extremamente precária. Convém termos senso de realismo: a precariedade da formação profissional dos professores está implicada nos baixos resultados da aprendizagem escolar. Há, certamente, professores com bom nível de competências e habilidades profissionais, social e eticamente comprometidos com seu trabalho. Entretanto, as deficiências de formação inicial e a insuficiente oferta de formação continuada, aliadas a outros fatores desestimulantes, têm resultado num grande contingente de professores mal preparados para as exigências mínimas da profissão (domínio dos conteúdos, sólida cultura geral, domínio dos procedimentos de docência, bom senso pedagógico). Há dificuldades dos professores em lidar com novos problemas sociais e psicológicos que acompanham os alunos que entram na escola (familiares, de saúde, de comportamento social, concorrência dos meios de comunicação, desemprego, migração...). Mais uma vez, não se trata de culpabilizar os professores, eles não respondem sozinhos pelos fracassos da escola, atrás deles estão as políticas educacionais, os baixos salários, a formação profissional insuficiente, a falta de condições de trabalho, falta de estrutura de coordenação e acompanhamento pedagógico etc. Mas para quem gostaria de ver as crianças e jovens aprendendo cidadania, dominando conceitos das disciplinas escolares, desenvolvendo seus processos e habilidades de pensamento... não há como não se decepcionar com os resultados apresentados.

Persiste o paradoxo pelo qual os governos precisam responder: por um lado, a formação de professores é um dos temas mais candentes na área da educação, há consenso de que qualidade de educação é inseparável da qualificação e competência dos professores; por outro lado, há um rebaixamento evidente da qualificação dos professores em todo o país, além da degradação social e econômica da profissão. Em outros termos, ao mesmo tempo em que se fala da valorização da educação escolar para a competitividade, para a cidadania, para o consumo, continuam vigorando salários baixos e um reduzido empenho na requalificação profissional dos professores.

3. A despeito de um crescimento realmente expressivo da pesquisa universitária e da produção editorial no campo educativo, resultando em ampliação da temática investigativa e em significativos desdobramentos teóricos, a relação do professorado do ensino fundamental e médio com essa produção é, em geral, insatisfatória. Persiste o já conhecido fosso entre teoria e prática, em que os pesquisadores não conseguem operar a transposição didática de sua elaboração teórica para os professores envolvidos na trama diária do trabalho docente. Os professores, por sua vez, desconfiam da eficácia da produção acadêmica sobre seu próprio trabalho. As práticas pedagógico-didáticas, as representações, muito pouco se modificam, o que se acrescenta são complementações, modismos, temperos, que não chegam a afetar o núcleo forte daquelas tendências pedagógicas mais conhecidas. Ainda assim, sabe-se da precariedade com que tais tendências são incorporadas, vigorando uma pedagogia tradicional, uma pedagogia nova e um tecnicismo educacional quase sempre vulgarizados. Em muitos casos, teorizações envolvendo a crítica política aos sistemas educacionais, a defesa do multiculturalismo, do feminismo, a adoção da interdisciplinaridade etc., ou não chegam aos professores ou a linguagem com que são comunicadas lhes é inacessível. Por outro lado, há palestrantes que sonegam a informação teórica em nome do apelo ao sentimento, ao prazer, aos devaneios, estabelecendo uma divisão equivocada entre a formação científica e profissional e os aspectos afetivos e estéticos. Os professores batem palmas mas, na verdade, acabam vendo nesses discursos uma ilusão para esquecer suas deficiências de formação, as condições precárias de trabalho e de salário e a desvalorização social da profissão. No fundo, é uma atitude que banaliza a capacidade de compreensão dos professores e se aproveita da sua ingenuidade.

Zeichner (1998) captou bem os sentimentos de uma professora sobre sua relação com os pesquisadores universitários:

Apesar do meu contentamento por ter outras pessoas para falar – pessoas com importantes perspectivas e interesses e algumas vezes valiosas informações – sob diferentes pontos de vista, estas relações parecem ter um sabor colonial para eles... Parece-me que os outros estão fazendo as discussões que necessitamos fazer por nós mesmos e que os outros se beneficiam em uma economia que recompensa aqueles que dão sentido ao nosso trabalho.

4. Boa parte dos professores formadores de professores (filósofos, sociólogos, psicólogos e, até, especialistas no ensino de disciplinas) desconhece a necessidade de que suas disciplinas se convertam em saberes pedagógicos, ou se recusam a isso, pelo que formulam conteúdos distanciados dos problemas concretos das salas de aula, empobrecendo a especificidade desses saberes, muitas vezes substituídos pela discussão de temas fragmentados – linguagem, gênero, interdisciplinaridade, diversidade cultural – dissociados do campo conceitual da pedagogia e da didática e, por isso mesmo, resultando em visões reducionistas. O problema não está nos temas, está na fragmentação ou viés com que são apresentados. Com efeito, a pesquisa em formação de professores tem propiciado a explicitação de saberes profissionais dos professores: saberes específicos (conteúdos das disciplinas), saberes da experiência, saberes pedagógicos (das ciências da educação) e saberes da ação pedagógica (o ensino, o currículo, a didática das disciplinas, as formas de transposição didática dos conteúdos, as características da aprendizagem dos alunos, etc.) (Cf.Gauthier, 1998; Pimenta, 1997; Tardif, 1999; Garcia, 1999). Isso, todavia, não tem sido suficiente para mobilizar parte dos formadores de professores a orientarem seus planos de ensino às necessidades da prática docente que acontece nas escolas, desenvolvendo seus conteúdos à margem de suas implicações pedagógico-didáticas, preferindo temáticas supostamente mais “científicas”, mais “críticas”. Por razões ainda pouco pesquisadas, resistem a converter os saberes das ciências da educação – quando estas se destinam a formar professores - em saberes pedagógicos e, com isso, pouco colaboram no atendimento de necessidades e problemas postos pela prática (Pimenta, 1999). Há uma ideia de que a pesquisa que dá status e prestígio é a que enfoca os temas da moda; ao invés de se buscar o conhecimento da realidade, respostas a demandas da realidade, tende-se mais a referendar posições teóricas ou interpretativas prévias. Tratar de temas do senso comum, ficar à mercê das demandas da prática docente cotidiana seria sucumbir à lógica do sistema, como se problemas da vida interna da escola e da sala de aula fossem questões menores... Certos formadores de professores estariam preocupados mais com suas carreiras, suas pesquisas e seus artigos do que com as escolas e seus professores (Cf.Zeichner, 1998). Há casos de professores que, a propósito de análises políticas, sociais, econômicas, sobre a situação da educação e do ensino, induzem os alunos a uma atitude de ceticismo, às vezes até de desdém pelas questões pedagógicas, levando à ridicularização da profissão. Nesse acaso, alguns professores formadores confundem “postura crítica” com atitudes destrutivas em relação à educação e à profissão, corroendo as possibilidades de construção da identidade profissional e compromisso com a profissão. A questão é: para que efetivamente servem essas disciplinas e suas pesquisas, quando desenvolvidas no campo investigativo da educação e que, em princípio, deveriam estar a serviço da pedagogia e dos professores?

O retorno aos reducionismos – especialmente o sociológico e o psicológico – é fenômeno antigo na educação, um campo científico realmente propício a isso. Esse viés das pesquisas em educação talvez seja bem mais problemático do que parece à primeira vista se considerarmos que as práticas educativas, e obviamente as práticas docentes, têm um caráter multifacetado, ou seja, elas são, ao mesmo tempo, sociais, psicológicas, culturais, econômicas, biológicas etc. E quanto mais se reconhece a não redução da prática educativa à prática escolar, mais se faz necessário compreender que essas relações entre o indivíduo e o meio humano, social, físico, ecológico, cultural, econômico, requerem um campo teórico-prático que integre esses vários aportes, que é a Pedagogia. Com efeito, cada uma das chamadas ciências da educação (Sociologia da..., Psicologia da..., Linguística aplicada à..., Economia da...) aborda o fenômeno educativo sob a perspectiva de seus próprios conceitos e métodos de investigação, enquanto que a Pedagogia se distingue por estudar o educativo na sua globalidade, inclusive para integrar os enfoques parciais daquelas ciências em função de uma aproximação global e intencionalmente dirigida aos problemas educativos. Corroborando para a construção dos saberes pedagógicos, com a Pedagogia propiciando a necessária unidade de enfoque das práticas educacionais, as ciências da educação seriam fortalecidas. Mas a aproximação entre as chamadas ciências da educação e a Pedagogia parece estar longe de realizar-se.

5. O “boom” dos estudos sobre formação de professores, com raras exceções, também parece ter provocado uma redução do interesse investigativo pelas questões pedagógico-didáticas ligadas à qualidade da aprendizagem dos alunos, enfatizando ora os aspectos institucionais ora o desenvolvimento pessoal do professor, num risco de se dissociar na prática docente o refletir, o saber fazer e a garantia de resultados de excelência na aprendizagem dos alunos. De fato, tem surpreendido o volume de trabalhos nessa área nos vários encontros e simpósios, mas precisa ser motivo de preocupação entre os educadores a redução de espaço de discussão e reflexão aos professores das diversas metodologias e práticas de ensino. A pergunta é: com que objeto, mesmo, lida um campo de investigação que se denomina “formação de professores”? Será que esta linha de investigação tem chegado à essência dos problemas, ou seja, a efetividade da formação e a aprendizagem dos alunos? Suspeito que à maior visibilidade para a temática da formação de professores correspondeu, em alguns casos, a um distanciamento da vida real das escolas e das salas de aula, especialmente das necessidades e demandas relacionadas com a qualidade cognitiva e relacional da aprendizagem dos alunos. Não é que a formação de professores não possa constituir-se em campo de investigação (currículo, as formas de desenvolvimento profissional, locais de formação etc.). Apenas se questiona eventuais distanciamentos de temas do campo da didática e das metodologias específicas e das ações concretas de melhora da qualidade da atuação docente, deixando para segundo plano os processos de ensino e aprendizagem que correspondem, afinal de contas, ao nuclear do exercício profissional de professores[2].

6. As recentes teorizações sobre formação de professores talvez não estejam dando a devida importância a alguns ingredientes da realidade institucional e social das escolas brasileiras, na verdade, condições de base que comporiam os requisitos indispensáveis para introdução de práticas de reflexividade no contexto das ações práticas. Algumas dessas condições dizem respeito: (a) à precariedades das condições de trabalho dos professores que podem levar a um comportamento bastante resistente a mudar suas práticas. Um estudo citado por Contreras (1998) é útil para a nossa reflexão sobre resistências à mudança por parte dos professores e seu escasso entusiasmo pela profissão. Segundo esse estudo, os professores constroem seu papel no contexto da instituição escolar que têm uma história, uma cultura, práticas, rotinas, estilos estabelecidos. Os professores aprendem a conviver com essa cultura e precisam combinar suas perspectivas e expectativas com as que a instituição possui a respeito deles. Haveria três formas de o professor orientar o seu trabalho: o presentismo, em que os professores concentram seu esforço nos planos de curto prazo na sala de aula, que é onde acham que podem conseguir alguma coisa, alguma realização etc.; o conservadorismo – os professores evitam discussões, reflexões ou compromissos com mudanças que mexam com o que fazem ou com o modo como fazem, e também resistem a alguma observação sobre o que ensinam e como ensinam; o individualismo – tendem a recusar colaboração de colegas por medo de julgamentos e críticas ou de interferências no seu trabalho. (b) à precariedade da formação profissional, seja no domínio dos conteúdos com os quais trabalha, seja na bagagem cultural necessária a insistentes exigências de flexibilidade mental e capacidade de enfrentar problemas imprevistos, seja no domínio de competências e habilidades para gerir a sala de aula[3]. (c) às formas de organização do sistema educacional e suas políticas, às contradições das instituições formadoras e das próprias entidades que congregam professores e às práticas culturais e o habitus existente nas escolas, ingredientes esses que conformam as bases da cultura em que os professores são socializados e formados. (d) ao conflito de papéis que muitos professores se veem obrigados a desempenhar numa sociedade em que cresce a pobreza, a violência, o desemprego, a precariedade das condições de vida. Muitos professores hoje precisam desempenhar ao mesmo tempo papéis de pai ou mãe, vigilante de alunos, militante de uma ONG ou organização política, conselheiro, etc.

7. A desconsideração ou secundarização dos conteúdos em algumas teorias recentes, a posição de antinomia entre processos educativos e resultados de desempenho, a flexibilização da avaliação escolar, a promoção automática pouco cuidadosa e outras ações tendentes a certo afrouxamento nas práticas escolares, ao invés de serem medidas progressistas, podem estar contribuindo para manter a exclusão social. Não posso negar mudanças nas formas de escolarização, nos modos de aprender, no papel da escola numa sociedade marcada pelo aparato informacional. Cumpre, também, reconhecer a crescente dificuldade de se chegar a um consenso sobre as funções da educação em geral, da escola em particular e das formas pedagógicas e metodológicas que lhe cabem, frente às características do mundo atual. Estão em evidência diferentes posições de educadores, pais, alunos, professores sobre os objetivos das escolas, papel dos conteúdos, ênfases a se dar nas práticas pedagógicas.

Sem pretender ignorar as efetivas contribuições, por exemplo, da teoria curricular crítica, da psicopedagogia, da teoria crítica de origem alemã e até das teorias pós-críticas, há nelas certa recusa a estabelecer objetivos e conteúdos sistematizados, a aceitar certa racionalidade na condução dos processos de ensino e aprendizagem, e uma tendência exacerbada em valorizar os processos em detrimento dos resultados da aprendizagem. Todavia, não seria uma injustiça social, especialmente aos pobres, sonegar o domínio dos conteúdos escolares e as competências do pensar autônomo, crítico e criativo? Com efeito, a escolarização é uma necessidade social, há um nível de desempenho escolar e social imposto pela sociedade presente, há exigências de educação social, moral e estética, sanitária, ambiental. Posições extremadas que incentivam o espontaneísmo, a omissão em relação ao domínio dos conhecimentos sistematizados, a diminuição do rigor no atendimento das tarefas sociais da educação, a leniência nas práticas avaliativas, podem levar a prejuízos inestimáveis às crianças das camadas populares e camadas médias empobrecidas. Essas posições não ajudam na luta pela eliminação das desigualdades sociais, pelo reconhecimento da diversidade cultural, pela superação da subalternidade da globalização, pela preparação profissional geral, ou seja, não propiciam as condições para que a parte pobre e oprimida da sociedade produza ideias, crie, se prepare para o mundo da ciência, da cultura, da arte, da profissão e da cidadania.

8. Em alguns setores do campo educacional seja pelo lado dos simpatizantes da teoria social pós-moderna, seja pelo lado dos que insistem nas “conquistas históricas” do movimento pela formação de professores, perpassa a crença de que seus pontos de vista são “avançados”, o dos demais, “ultrapassados”. Minha suspeita é de que esses setores realizam uma operação mental muito semelhante ao que já se viveu num período de patrulhamento ideológico: nossa posição é a verdadeira, a dos outros ideológica ou ultrapassada. Na verdade, o que define algo como “avançado” ou progressista? Será progressista, por exemplo, a organização da escola por ciclos, quando esta resulta numa frágil escolarização? Será ultrapassado postular a formação específica de diretores e coordenadores pedagógicos e avançada a posição de defender um curso de pedagogia apenas para formar professores? Que posições dessas beneficia mais a escola e a qualidade cognitiva das aprendizagens? Será mais progressista defender uma prática escolar centrada nas relações sociais ou num currículo mais voltado para os processos do que para os produtos, e mais conservador quem defende o domínio da cultura objetivada e o desenvolvimento das capacidades do pensamento como forma de enfrentamento tanto das exigências de exercício profissional e cidadania como dos conteúdos das mídias e das variadas formas de inculcação de modelos de vida e de subjetividade? Porque um aluno seria melhor “educado” ao se preferir o uso das narrativas, ao trabalho com o desenvolvimento das estratégias de pensamento? Ou, ainda, o que haveria de ultrapassado em se reconhecer que há campos de conhecimento com implicações na educação, distintos de um campo especificamente voltado para a investigação sobre o fenômeno educativo? Não será mais conservador para uma época nitidamente interdisciplinar insistir na redução da formação do educador à docência, como defendem alguns militantes da causa da formação de professores?

Penso que o uso de termos como tradicional, moderno, pós-moderno ou pós-crítico precisam ser trabalhados a partir de certos parâmetros, especialmente, diante da questão: o que deve ser uma escola que atenda às necessidades individuais e sociais das crianças, do ponto de vista da formação escolar, neste país de hoje, e que educadores, de vários estilos, são necessários.

AS TEORIZAÇÕES EM TORNO DA ESCOLARIZAÇÃO - O DISTANCIAMENTO ENTRE OS DISCURSOS E O QUE EFETIVAMENTE ACONTECE NAS SALAS DE AULA


Apresentei até aqui um não tão animador diagnóstico da situação da escola, do ensino e do professorado, através de moções que chamei de suspeitas. Não espero estar trazendo novidade, são fatos conhecidos de todos, embora eu não tenha pretensão de estar absolutamente seguro da validade dessas afirmações. Pode-se extrair dessas suspeitas uma série de consequências, mas eu queria tratar apenas do impacto que elas podem ter na qualidade da produção de saberes, enquanto atividade peculiar das escolas e dos professores. Várias questões e problemas implicados nas suspeitas levantadas dizem respeito às relações entre vários fatores: a pesquisa universitária, as teorizações no campo educacional, as políticas de formação inicial e continuada de professores, as necessidades e demandas das escolas, as vicissitudes da organização e gestão internas das escolas. A principal hipótese é de que algumas das teorias ou propostas tidas como mais “avançadas” e mais prestigiadas hoje, estariam negativamente relacionadas com a realidade concreta e as práticas de produção de saberes na escola.

Não é, evidentemente, possível captar a variedade de teorias e propostas que vêm circulando no meio educacional - nas faculdades, nas instituições de pesquisa, nos congressos e encontros. Farei uma seleção arbitrária delas, situando-as em duas linhas gerais de análise: 1) os estudos centrados em torno da sociologia educacional ou campos correlatos que geralmente fazem uma análise externa da escola e do ensino, algumas todavia sonhando penetrar dentro da escola, ainda que seja pelo viés sociológico. 2) os estudos e ações organizacionais, de natureza pedagógica ou curricular, que se destacam pela intervenção por dentro da estrutura escolar, ainda que seja pelo viés ora organizacional ora psicológico.

1. Do lado da sociologia educacional (critica externa)


É conhecida a produção acadêmica que tem saído do âmbito da análise sociológica, política e filosófica da educação. Uma linha desses estudos se detém nas análises críticas globalizantes, especialmente em relação ao novo paradigma produtivo caracterizado pelo economicismo. Outra destaca a análise dos elementos sociais e culturais da prática educativa enquanto projetados no currículo das escolas. Uma terceira linha acentua mais fortemente os aspectos culturais, tendendo a uma postura mais subjetivista e ao relativismo cultural.

Os autores do primeiro grupo se destacam por uma forte crítica ao ideário neoliberal, especialmente pelo seu caráter economicista excludente. São objetos de crítica não só a ideologia neoliberal, mas suas estratégias de reforma educacional como a autonomia da escola, a gestão, avaliação institucional, formação e profissionalização de professores, projeto pedagógico, participação de pais etc. Denuncia-se que algumas dessas práticas mal disfarçam um cunho diversionista no uso dos termos, os temas autonomia da escola, descentralização, por exemplo, podem significar na prática uma ação concreta de diminuição do papel do Estado. O que alguns desses autores não distinguem é que tais estratégias são, também, propostas que marcaram no passado as lutas de educadores de esquerda e que obviamente continuam sendo admitidos como necessários e válidos para os objetivos de melhor qualidade das escolas. A crítica generalizante a essas ações (que podem ser legítimas também numa política educacional de esquerda) podem inibir iniciativas de renovação e decisões dos educadores empenhadas na modificação das escolas, temendo que sejam identificados com posições neoliberais. A despeito do valor de tais análises em nutrir a visão crítica dos professores, podem ocorrer duas consequências desmobilizadoras: a) acentuar um reducionismo crítico, achando que basta tomar consciência dos males das políticas neoliberais e das divisões sociais, dos impactos perversos do economicismo, da tecnologia etc., sem valorizar a necessidade da atuação pedagógica nas escolas. b) difundir uma problemática identificação entre a ideologia das políticas educacionais oficiais e as ações pedagógico-didáticas de melhoria do funcionamento das escolas mesmo que coincidam em algum ponto com aquelas políticas. c) Não propiciar pistas aos professores para elaborarem subjetivamente a visão crítica e desenvolverem formas pedagógicas para trabalhá-la com os alunos.

Uma proposta de atuação escolar originada na Sociologia da Educação vem tentando, no entanto, aliar a análise externa da escola a ações internas. A ideia básica é de que a escola seja um espaço de vivências de novas relações sociais, ou seja, as formas como se organizam e ocorrem as relações sociais da escola aparecem como caminho pedagógico para a formação dos alunos. A formação escolar estaria centrada não nos conhecimentos formais, mas no processo de sua aquisição e nas relações sociais aí envolvidas (Arrroyo, 2000).

Na prática, é possível supor que se introduz na escola uma espécie de pedagogia cooperativa, ressaltando práticas de convivência entre professores e alunos, especialmente entre os próprios alunos e a atenção a problemas sociais que se passam fora da escola como as práticas sociais, as desigualdades sociais, os conflitos, os problemas ambientais e tecnológicos, etc. A proposta reforçaria a dimensão sociocultural no processo do conhecimento, lembrando Dewey, que propunha às escolas criar situações pedagógicas interativas para facilitar os processos democráticos. Esta concepção acentua os fatores sociais e culturais no processo de conhecimento, contrapondo-se à ênfase nos conteúdos formais, ao enfoque psicológico da aprendizagem ou a qualquer tentativa de considerar os fatores cognitivos internos da aquisição do conhecimento.

Por sua vez, a Sociologia Crítica da Educação vem alimentando boa parte da investigação em torno de uma teoria curricular crítica, também acentuando os fatores sociais e culturais na construção do conhecimento, lidando com temas como cultura, ideologia, currículo oculto, linguagem, poder, multiculturalismo (Moreira & Silva, 1994). Os autores dessa orientação opõem-se às chamadas teorias do consenso, especialmente o funcionalismo estrutural, são pouco simpáticos ao Estado e às formas de planejamento estatal e defendem que os conflitos, as discordâncias, são condições para a mudança social. A teoria curricular crítica questiona como são construídos os saberes escolares, propõe analisar o saber particular de cada agrupamento de alunos, porque esse saber expressa certas maneiras de agir, de sentir, falar e ver o mundo. Ou seja, são essas práticas discursivas que constróem os sujeitos em relação com as questões do poder. As perguntas a serem feitas num contexto de aprendizagem seriam do tipo seguinte: como é que o discurso se relaciona com a construção e a subjugação da humanidade? como se relacionam conhecimento e poder? quais são as relações de classe, etnia, gênero, que fazem com que o currículo seja o que é e que produza os efeitos que produz? (Ibid.).

A cultura é vista como terreno de produção cultural e de política cultural. Na visão da Sociologia Crítica não há uma cultura unitária, homogênea; a cultura é um terreno conflitante onde enfrentam-se diferentes concepções de vida social. O currículo, nesse sentido, não tem a ver com a organização de matérias cujo conteúdo deve ser absorvido, mas a um terreno de luta e contestação, em que se criará e produzirá cultura. No âmbito, ainda, da esfera cultural, destaca-se o tema da diversidade cultural e da diferença, em que se inscrevem novos movimentos sociais e novos sujeitos sociais que afirmam sua identidade: crianças, mulheres, negros, homossexuais e outros. Quando se pensa um currículo, é preciso começar captando as “significações” que estes sujeitos fazem de si mesmos e dos outros através da experiência compartilhada de vivências. Na prática, o discurso da diferença e da pluralidade constitui o tema do multiculturalismo, de uma educação e um currículo multicultural. Na esfera dos sistemas de ensino, leva a políticas de integração de minorias sociais, étnicas e culturais ao processo de escolarização. Na esfera da escola e do currículo, ao acolhimento da diversidade, das diferenças, à diversificação da cultura escolar, a um currículo multicultural. Está claro que se propõe uma transição da ênfase no social para o cultural. É bem ilustrativa a declaração de Giroux:



“(...) é imperioso que se criem métodos de análise que não partam do pressuposto de que as experiências vividas podem ser automaticamente inferidas a partir de determinações estruturais. (...) Uma política cultural requer o desenvolvimento de uma pedagogia atenta às histórias, aos sonhos e às experiências que os alunos trazem à escola (...) começando por essas formas subjetivas, os educadores poderão desenvolver uma linguagem e um conjunto de práticas que confirmem, acolham e desafiem formas contraditórias de capital cultural”(1994).

Essa perspectiva da Sociologia Crítica tem méritos que precisam ser destacados: é afirmativa, pois ao mesmo tempo que denuncia o papel da escola como reprodução da estrutura social, sustenta a importância da ação dos sujeitos e as possibilidades de um currículo critico centrado na cultura dos oprimidos. Entretanto, não parece facilitar muito as coisas para os professores. Na verdade, o viés sociológico faz desvincular o trabalho docente de preocupações mais pontuais com questões de aprendizagem, desenvolvimento, processos cognitivos. Ao criticar a psicologia comportamental e a cognitiva por estarem demasiadamente voltadas para questões mais imediatas e mais metodológicas descuidando da ênfase na analise das relações de poder, da ideologia, da cultura, a sociologia crítica também descarta os aportes da didática e da psicologia no processo de ensino e aprendizagem. É certo que o currículo é espaço de produção de cultura, é luta. Mas não vejo como dispensar as mediações cognitivas, o desenvolvimento de processos cognitivos internos, progresso na leitura critica da realidade propiciado pelo conhecimento científico. Ao se perguntar sobre como fortalecer o poder dos estudantes, não se põem aí exigências de natureza cognitiva? A mediação dos professores não implica operações cognitivas, processos cognitivos internos?[4] Como é que a escola e o conhecimento ajudam a desenvolver a autonomia dos sujeitos senão por processos mediadores que implicam a ajuda cognitiva às estratégias de pensamento do aluno?

Além disso, não fica suficientemente esclarecido nessa proposta a forma pela qual os professores transformam as análises dos fundamentos sociais e culturais do currículo em práticas de sala de aula nas suas matérias. Eu sei que os professores precisam compreender as formas pelas quais o conhecimento escolar se constitui e em que grau as relações sociais na sala de aula estão impregnadas de relações de poder. Mas, daí, como se realiza o trabalho efetivo de ensino? Qual é a contribuição desses autores sobre as condições de provimento de melhores situações de aprendizagens, de recursos eficazes de promoção de aprendizagens mais sólidas e duradouras pelos alunos? (Cf.Libâneo, 1997).

A terceira linha que busca estabelecer ligações da teoria social com a educação, é a que se denomina pós-estruturalista ou pós-critica. É difícil dizer o que é uma visão pós-crítica de currículo, de conhecimento e muito menos do papel da escola. No geral, pode-se identificá-la com os seguintes traços: uma descrença no saber fundado na razão, crítica dos paradigmas clássicos do conhecimento, impossibilidade das formas de sistematização do conhecimento, caráter opressivo dos saberes, ligação entre saber e poder (cumplicidade do saber com o poder). Todas as teorias pedagógicas modernas passam pelo seu crivo crítico, ao questionar o ideário iluminista, as visões totalizantes do ser e existir e, por outro lado, acentuar as subjetividades, o emocional, o imaginário, a diferença, a alteridade, o sentido das falas, a relação saber-poder, as peculiaridades culturais, as relações de gênero, sexo, raça, etnia. “Quando aborda os temas educacionais, o faz exclusivamente para denunciar o caráter sistemático, desumanizador e repressivo dos saberes e dos aparelhos sociais envolvidos (...) A institucionalização do pedagógico é passada por severo crivo quando abordada” (Severino,1999).

Recentemente, vem se delineando uma perspectiva pós-moderna de currículo, com pretensão de conectar o moderno com o pós-moderno, cujas referências são Dewey, Bruner, Rorty e a teoria da auto-organização. O currículo é tomado como processo, não para “transmitir o que é conhecido, mas o de explorar o que é desconhecido”, em contextos situacionais em que um grupo de indivíduos interagem na mútua exploração de questões relevantes. Busca-se uma epistemologia experiencial em que se destacam os significados pessoais, o conhecimento dialógico, interativo, através de um modo de conhecimento narrativo (Doll Jr., 1997). Um currículo pós-moderno, segundo Doll Jr., será baseado na experiência, na vivência dos alunos, apostando no processo, na relação intersubjetiva, na busca de significados pessoais da experiência, para ir criando conhecimento. Importa o processo, não o produto, de modo que o currículo não é estabelecido previamente mas emerge através da ação e interação dos participantes. Esse diálogo experiencial pode acontecer através de modos narrativos, como contar boas histórias que expressam sentimentos, vivências, visando incitar as pessoas ao diálogo. Não se pretende com isso chegar a nenhuma definição, a nenhuma conclusão, mas explorar, entre as pessoas, possibilidades de um texto, de uma história.

Num relacionamento reflexivo entre professor e aluno, o professor não pede ao aluno que aceite a autoridade do professor, pelo contrário, ele pede que o aluno suspenda a descrença nessa autoridade, reuna-se ao professor na investigação, naquilo que o aluno está experienciando (Ibid.).

As teorias e proposições resenhadas não têm o mesmo perfil teórico, mas aproximam-se de uma tendência comum de por em questão práticas educacionais que impliquem uma pedagogia que explicite objetivos e formas organizacionais e metodológicas, que proponha uma direção, um conjunto de saberes sistematizados e de processos de ensinar. Há uma clara tendência em ignorar a tradição pedagógica e psicológica que pode ajudar a compreender os processos internos do aprender, bem como em ignorar a importância dos conteúdos escolares para a formação geral, tendendo a passar ao largo da necessidade social da escolarização, da realidade das salas de aula e dos processos reais de ensino e aprendizagem. É verdade que o contexto social e cultural é integrante da aprendizagem, que as práticas de relações sociais criadas na escola atuam na formação dos alunos, que se aprende melhor com base em situações reais do cotidiano etc., mas a priorização seja das relações sociais e culturais, seja do emocional e do imaginário, seja do currículo em processo, não só não atende ao conjunto dos objetivos escolares como também não se aplica a todas as necessidades do ensino e da aprendizagem, por mais que cada um desses fatores, quando integrados num conjunto pedagógico-didático, sejam da mais alta importância.

A meu ver, da mesma forma que não podemos deixar de lado os contextos externos da aprendizagem, - e aqui é evidente que se concebe os alunos como sujeitos sociais e históricos constituindo-se na prática social concreta - também não é possível um ensino de qualidade sem penetrar nas questões da aprendizagem, dos processos internos da aquisição do conhecimento e do desenvolvimento das capacidades de pensamento, assim como o desenvolvimento de competências profissionais dos professores.

2. Do lado da prática escolar e docente (crítica interna)


As formas de intervenção pedagógico-didática e organizacional nas escolas têm sido defendidas a partir de vários enfoques, não sem riscos de se cair em reducionismos de tipo psicológico, pedagógico ou mesmo organizacional, à medida que se desconsidera os fatores políticos, sociais e culturais na escolarização. Em qualquer caso, o que se argumenta é que mudanças institucionais e formas de atuação pedagógica ou psicopedagógica visam atender à demanda por mais qualidade da educação escolar e do ensino. É certo que não é fácil apresentar soluções para a problemática do ensino brasileiro. Os sistemas de ensino pensam estar acertando, os educadores pensam, a cada onda que chega, estar descobrindo o melhor caminho para o enfrentamento dos problemas. Assim é que podemos estar identificando algumas dessas soluções e levantando suspeitas de sua efetividade, explicadas, em parte, por não se ter muita clareza do que se quer com a educação escolar no mundo de hoje.

As ações pedagógico-didática nas escolas, no marco das reformas educativas que acompanham as políticas neoliberais, têm como suporte a tese da centralidade da educação no novo paradigma produtivo, concretizada em ações em que se priorize maior eficiência da aprendizagem escolar. Esta orientação se viabiliza por várias medidas, desde modificações nas formas de gestão (descentralização, autonomia, capacidade gerencial, reorganização dos níveis de escolarização, parceria com a comunidade) até as questões pedagógicas diretas (atuação do professor, eficiência dos processos de ensino e aprendizagem, práticas de avaliação, utilização de técnicas e recursos de ensino). Há uma evidente tendência em localizar os problemas na esfera institucional, para torná-la eficiente mediante práticas da gestão empresarial. Sistemas de ensino estaduais e municipais aplicam essa orientação de vários modos, ora jogando o peso das intervenções na esfera organizacional (práticas de gestão da escola), ora em medidas pedagógicas de alcance duvidoso (os ciclos de escolarização, a flexibilização da avaliação da aprendizagem). A ênfase à gestão institucional vem de uma crença já incidente nos anos 70 nos meios oficiais de que formas de gestão mais eficazes resultam em melhoria da qualidade de ensino, ou seja, a eficiência da aprendizagem escolar decorreria de equipes de professores eficientes, treinados. Há um bom número de pesquisas, nacionais e estrangeiras, mostrando como os professores reagem a um tipo de estrutura imposta, resistindo à participação, induzindo à suspeita de que tais medidas funcionariam contra a qualidade de ensino desejada. A adoção dos ciclos e a flexibilização da avaliação, por exemplo, embora apareçam em alguns lugares como solução psico-pedagógica, teria como objetivo, na realidade, liberar vagas ocupadas pela ocorrência da repetência e descongestionar o fluxo de alunos mas trazendo, como consequência, perda da qualidade cognitiva das aprendizagens (manutenção do fracasso escolar).

Também no âmbito das experiências “progressistas” trabalha-se no sentido de reforçar o processo de ensino e aprendizagem, não propriamente na ênfase anterior em que a motivação é quase sempre de cunho organizacional, gerencial. Quando se prioriza, no campo progressista, os aspectos organizacionais, o fazem no sentido de que a organização escolar se apoie predominantemente nas práticas participativas de decisão, na crença de que basta participar, bastam reuniões sistemáticas, eleições de diretores, e ter-se-á democracia na escola e qualidade de ensino. Mas também estão presentes ações pedagógico-didáticas, especialmente voltadas para a superação da cultura da repetência e da exclusão escolar, como a organização da escola em ciclos, dentro de uma justificativa notoriamente escolanovista segundo a qual a escola precisa respeitar o ritmo de desenvolvimento natural da criança, no que se refere ao desempenho nas matérias e às suas habilidades cognitivas e afetivas. Então conclui-se que repetir de ano é um desrespeito à criança, a organização em séries contraria os tempos e ritmos de cada criança, a avaliação formal é impensável, é mais importante o processo do que o produto, etc. Novamente aqui reaparecem as dificuldades dos educadores em definir objetivos e meios da educação obrigatória hoje, que práticas escolares são mais compatíveis com esses objetivos ou em que consiste a qualidade do ensino. Não há nenhuma dúvida sobre a consideração da subjetividade dos alunos, seu ritmo de desenvolvimento, suas características de personalidade, suas possibilidades e limites de aprender. Todavia, é preciso que se considere que os indivíduos vivem numa sociedade que põe exigências concretas de inserção, implicando conteúdos, competências do pensar e do agir e também assistência aos comportamentos sociais dos alunos e à sua conduta pessoal[5]. Especialmente, a realização humana implica a apropriação ativa e o domínio da cultura, da ciência, da arte, o que não se assegura sem parâmetros mínimos de organização, rigor e acompanhamento sistemático. Isso significa uma aposta num novo critério de justiça social: qualidade cognitiva e operativa dos processos de ensino e aprendizagem para todos.

Uma outra questão que tem mobilizado os educadores preocupados com formas de atuação pedagógica dentro das escolas, para além das analises mais globais, é a profissionalização e o desempenho dos professores. De fato, nenhum projeto político e pedagógico de reforma educacional pode prescindir dos professores, a qualidade dos professores é o limite das propostas de mudança na qualidade do ensino (Gimeno, 1999). A esse respeito, vem repercutindo com muita intensidade no Brasil as pesquisas realizadas em países da Europa e nos Estados Unidos sobre o professor reflexivo, isto é, sobre o desenvolvimento da capacidade reflexiva dos professores com base na sua própria prática. Há nessas pesquisas um entendimento de que a formação teórica não resultaria necessariamente numa prática, e sendo assim, a prática deveria ser buscada na reflexão do professor a partir de sua própria prática. Sobre a necessidade de o profissional associar o seu fazer ao processo do pensar não há o que questionar, o cuidado estará sempre em evitar que a ideia do professor reflexivo vire modismo e torne-se tábua de salvação de todos os problemas da escola.

Há outras orientações buscando espaço enquanto teorias educacionais aplicadas à contemporaneidade. Tem-se falado de pós-piagetianismo, linguística aplicada à educação, teoria da complexidade, teoria da corporeidade, teoria da ação comunicativa. São tendências com forte poder de persuasão, mas ainda sem suficiente formulação pedagógica para serem referência para o trabalho dos professores, especialmente naqueles casos em que não procedem da prática, mas do mundo acadêmico. Há, por outro lado, outras orientações de cunho meramente prático, com pouco lastro teórico e crítico, que encantam os professores, mas dispensam sua reflexividade.

Não seria sensato desconhecer a potencialidade teórica e prática de muitas inovações levadas a efeito nos sistemas de ensino, na pesquisa e nas escolas. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer a variedade de olhares com que se vê hoje a escolarização obrigatória, pois daí decorrem distintos objetivos e distintas práticas. Se, todavia, se acredita na educação escolar como direito social universal, se se acredita no desenvolvimento da capacidade de pensar como requisito para a participação social, se se aceita que sem conteúdos científicos e culturais não há desenvolvimento mental, então há que se apostar numa “escolaridade igual para sujeitos diferentes, em uma escola comum”, assim definida por Gimeno Sacristan:

Uma escola comum que satisfaça o ideal de uma educação igual para todos (o que pressupõe em boa medida um currículo comum), na paisagem social das sociedades modernas, acolhendo a sujeitos muito diversos, parece uma contradição ou algo impossível. Não obstante, o direito básico desses sujeitos à educação, nas condições do que Walzer denomina igualdade simples (um ensino com conteúdos e fins comuns), obriga a aceitar o desafio de tornar compatível na escolaridade obrigatória um projeto válido para todos com a realidade da diversidade. (...) a escola, durante a etapa da escolaridade obrigatória, deve ser integradora de todos ou, em caso contrario, trairá o direito universal à educação. Como chegar à universalização efetiva da mesma, respeitando o princípio da igualdade simples, dando acolhida à diversidade de estudantes e, inclusive, aspirando a fazer destes seres singulares? Enfrentamos um desafio tão difícil quanto atrativo (1999).



AS APOSTAS: O QUE SERÁ ESSENCIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES?

Foi Gimeno Sacristan quem inspirou o título deste trabalho quando esteve na 19ª Reunião da ANPEd em 1998. Ele começou sua exposição dizendo que iria expressar três suspeitas sobre o movimento de formação de professores. A primeira, dizia, era de que os professores trabalham, enquanto nós fazemos discursos sobre eles. Não falamos sobre a nossa própria prática mas sobre a prática de outros que não podem falar, que não sabem escrever artigos, e esta seria uma questão ao mesmo tempo sociológica, política e epistemológica. A segunda suspeita referia-se à complexidade do fato de um professor da universidade falar sobre o professor em geral, geralmente o professor do ensino básico porque entre esse professor e o professor universitário haveria muito poucas semelhanças. Somos ambos professores mas, na realidade, fazemos coisas muito diferentes, a preços muito diferentes, com status muito distintos, com poderes muito diferentes. Terceira suspeita: por que investigar os professores se os militares não investigam sobre os coronéis, os médicos não costumam investigar sobre médicos? Gimeno expressa a suspeita de que a maior parte da investigação sobre a formação dos professores é uma investigação enviesada, parcial, desestruturada e descontextualizada, que não entra na essência dos problemas (Cf.Gimeno, 2000).

Como contribuição à reflexão e à proposição de ações, passo das suspeitas às apostas no rumo de outra qualidade da produção de saberes na escola.

1ª aposta: É preciso retomar o debate e tomar posição sobre os objetivos de formação a serem providos pela escola hoje, que forme cidadãos numa sociedade que inclua todos, na nova configuração econômica, política, social, cultural, do mundo contemporâneo. Gimeno está certo, é preciso que retomemos o essencial da prática escolar para sabermos o que é o essencial da identidade profissional dos professores. Vamos formular nossas convicções, nossos propósitos políticos e pedagógicos e, em seguida, aprender na escola, com os professores, com as famílias, o que deve ser uma escola para a realidade social de hoje. O caminho para se chegar à essência dos problemas é fazer a pesquisa e a reflexão sobre a prática docente junto com os agentes diretos da escolarização. Eis o que me parece ser o essencial: os alunos precisam aprender ciência, cultura, arte, processos do pensar, e os professores precisam saber o quê e o como fazer isso. Dizendo o mesmo de um modo “politicamente correto”: “uma escolaridade igual para sujeitos diferentes em uma escola comum”, tal como propõe Gimeno. Na linguagem do pesquisador universitário: investigar a formação de professores a partir das necessidades e demandas da prática. Aprender a cultura, a ciência, a arte através de uma aprendizagem pensante não é nada muito mais do que a sempre proclamada formação geral que, ao mesmo tempo que possibilita a internalização de um conteúdo significativo e útil, proporciona também as ferramentas mentais para lidar praticamente com os conceitos e fazer a leitura e atuação prática no mundo da ciência, da cultura, da arte.

2ª aposta: Uma educação de qualidade para os alunos depende de uma formação teórica e prática de qualidade dos professores. Há exigências notórias de mudança na identidade profissional e nas formas de trabalho dos professores decorrentes de transformações no mundo da produção e do trabalho, nas tecnologias e nos meios de comunicação e informação, nos paradigmas do conhecimento, nas formas de exercício da cidadania, nos objetivos de formação que articulam aspectos cognitivos, sociais, afetivos, estéticos. A formação teórica e prática implica algo como um vai-e-vem entre o estudar e o fazer, mas cujo resultado é o saber fazer com consciência. Não se pode tolerar mais a formação teórica e prática precárias, ao contrário, é preciso cuidar do aprofundamento teórico nas disciplinas propriamente pedagógicas e admitir que o trabalho nas escolas e nas salas de aula implicam um “saber-fazer” que necessita ser assunto do currículo. A insuficiência de formação teórica dificultará a análise reflexiva da prática, por sua vez, a desvinculação do currículo das efetivas demandas da prática não permitirá que os professores desenvolvam competências para lidar com situações novas, problemas novos que sempre acabam por requerer um modus operandi. Muitos professores sentem necessidade de mudanças no seu trabalho e sabem que, para introduzi-las no seu trabalho, dependem de melhor formação pedagógico-didática, ou seja, de reorientação de suas convicções educativas e um replanejamento das práticas docentes em sala. Entretanto, a revisão dos currículos ainda resiste a necessidades de formação para o saber fazer, para as competências que propiciam flexibilidade mental e capacidade de resolver problemas imprevistos.

As propostas de formação de professor têm em comum a ideia de que a transformação da prática docente requer a ampliação da consciência sobre a própria prática. Isso se dá pela reflexão na ação, reflexão sobre o que faz, sobre as decisões que toma. Em paralelo, e sem descartar a reflexividade, desenvolve-se a temática de se conceber a formação de professores a partir das demandas da prática, considerando essa prática como uma situação concreta, em “contextos sociais e institucionais” em que ocorre o ensino (Pimenta, 1998). Ressalta-se aí o papel da pesquisa no ensino, instrumento da prática profissional do professor e forma pela qual o professor pode pensar sua prática, produzir conhecimento que leve ao aprimoramento do seu trabalho[6].

A Didática terá aí um papel decisivo: ajudar os formadores de professores a desenvolverem competências profissionais do saber conhecer, saber fazer, saber agir e, especialmente, a aprenderem a encontrar soluções frente a problemas didáticos, compreender situações concretas que envolvem as ações do ensinar e aprender. Ou seja, não basta refletir sobre a prática, é preciso desenvolver competências. A formação teórica e prática dos professores envolve, obviamente, a formação inicial, mas será necessário um investimento maciço na formação continuada através de um programa nacional de requalificação profissional.

3ª aposta: Somente professores que se transformam em sujeitos cultos, isto é, sujeitos pensantes e críticos, serão capazes de compreender e analisar criticamente a sociedade em que vivem, a política, as diferenças sociais, a diversidade cultural, os interesses de grupos e classes sociais e a agir eficazmente frente a situações escolares concretas. Há uma necessidade premente de o professorado ampliar sua cultura geral. Se precisamos colocar à disposição dos alunos os elementos necessários para desenvolverem uma formação geral elevada, é preciso que a formação dos professores contemple as bases de uma cultura científica na matemática, na geografia, na história, na cultura musical, na cultura literária, na cultura artística em geral. Alguém pode argumentar que isso é papel do ensino fundamental. Mas que fazer se os professores entram nas salas de aula sem dispor desta cultura de base? Se esses instrumentos culturais estão ausentes da formação, se o professor não se tornou um adulto culto, se ele necessita da cultura para ensinar cultura, então é preciso retomá-los na formação inicial e nas ações de formação continuada.

Não se trata, obviamente, do retorno à cultura enciclopédica antiga. Ser culto, hoje, é dispor de ferramentas conceituais para lidar com as coisas, tomar decisões, resolver problemas pessoais e profissionais. Culta é aquela pessoa que tem gosto em ampliar seus esquemas mentais de compreensão da realidade, que tem uma atitude de curiosidade, que desconfia do que parece normal. Uma pessoa culta está aberta a tudo o que não é ela mesma, a aceitar e analisar tudo o que ultrapassa o círculo mais fechado do cotidiano, do familiar, do local, ou seja, ir além das necessidades imediatas. Mas, para isso, são necessários, sim, informação, conteúdos, estratégias de pensamento.

4ª aposta: Ainda o domínio de conteúdos... Não há que se alimentar ilusões no campo da escolarização geral obrigatória: as escolas têm uma referência concreta e real do seu trabalho - os conteúdos escolares e os processos de desenvolvimento das capacidades cognitivas e operativas – e nenhuma justiça social se fará sem um propósito de prover isso a todos. O termo “conteúdos” refere-se aos conhecimentos sistematizados, selecionados das bases das ciências e dos modos de ação acumulados pela experiência social da humanidade e organizados para serem ensinados na escola; são habilidades e hábitos, vinculados aos conhecimentos, incluindo métodos e procedimentos de aprendizagem e de estudo; são atitudes, convicções, valores, envolvendo modos de agir, de sentir e de enfrentar o mundo. É na escola que se trabalha a cultura essencial, ainda que para isso necessite dos aportes das mídias, da cidade, das culturas específicas, dos movimentos sociais.

Um olhar realista sobre as condições de exercício da profissão apontaria para questões extremamente básicas sem as quais se torna difícil o alcance da qualidade de ensino. Por exemplo, no terreno da cultura e da ciência, ninguém dá o que não tem, professor que não se cultiva, que não está seguro ao menos no campo de conhecimento em que se especializa, não pode ensinar cultura. Por isso, é inteiramente descabida e antidemocrática a desvalorização que certos setores da educação vêm atribuindo ao domínio dos conteúdos culturais. Quanto mais se admite estarmos vivendo numa sociedade do conhecimento, mais se requer um conhecimento que interprete, elabore e critique a informação. A informação recebida das mídias e de outras formas de interação cultural representa ideias, conceitos, realidades que, para serem reinterpretadas, necessitam de outras ideias, outros conceitos, outras representações. Do mesmo modo, professores que não desenvolvem habilidades do pensar, que não conseguem argumentar oralmente ou por escrito, não consegue fazer o mesmo com seus alunos.

Nenhuma política de capacitação de professores será bem sucedida se não colocar os conteúdos como instrumentos de formação de capacidades cognitivas e operativas, como portadores dos meios conceituais de pensar a realidade a que se refere cada matéria. Obviamente, se esperamos da educação escolar a relação do aluno com os conteúdos, é fundamental que o mediador dessa relação também tenha um domínio seguro deles, de sua ligação com a prática e com problemas concretos, que saiba trabalhar os conteúdos como instrumentos conceituais para leitura da realidade, como ajuda para compreender o mundo cultural e social.

5ª aposta: A Didática deve ser assumida como disciplina prática, desenvolvendo programas de pesquisa a partir das necessidades e demandas da prática. É preciso ligar os conteúdos de formação com as experiências vividas na prática das escolas, considerar os pedidos de socorro que os professores fazem. Os problemas da prática dos educadores deverão ser considerados como ponto de partida e ponto de chegada do processo, garantindo-se uma reflexão com o auxílio de fundamentação teórica que amplie a consciência do educador em relação aos problemas e que aponte caminhos para uma atuação coerente, articulada e eficaz, frente aos problemas diários da sala de aula.

Não se trata, todavia, de atribuir à formação de professores uma conotação praticista, de formar o professor “prático”. Nem toda prática é necessariamente boa ou adequada, assim como não é possível qualquer reflexão sobre a prática se não há da parte do professor um domínio sólido dos saberes profissionais, incluída aí a cultura geral. E, mais importante que isso, não haverá muito avanço na competência profissional dos professores se ele apenas pensar na sua prática corrente sem recorrer a um modo de pensar obtido sistematicamente, a partir do estudo teórico das matérias pedagógicas e da disciplina em que é especialista. Sem teoria, sem desenvolvimento sistemático de processos de pensamento, sem competência cognitiva, sem o desenvolvimento de habilidades profissionais, o professor permanecerá atrelado ao seu cotidiano, encerrado em seu pequeno mundo pessoal e profissional. Seria uma má estratégia de formação de quadros docentes reservar a capacidade de pensar de forma mais elaborada, a aquisição de uma sólida formação científica, a capacidade de abstração, apenas aos pesquisadores e docentes das universidades. A busca da profissionalidade docente não pode transformar-se em mais uma forma de exclusão do professorado do ensino fundamental.

Os professores necessitam, pois, de uma sólida formação teórica – cultural e científica – para aprender a captar as distorções, as realidades sociais e escolares, desde as desigualdades sociais, as relações de poder, até as sutilezas da relação docente e das dificuldades dos alunos. Inclusive para captar as distorções sociais, culturais, de sua própria prática. O que proponho é que a investigação sobre formação de professores não se detenha no desenvolvimento da reflexividade, mas que coloque questões como: que tipo de formação inicial leva o futuro professor a tornar-se um sujeito pensante, culto e crítico? O que pode ser feito pelos sistemas de ensino para “recuperar” ou remediar a falta de cultura geral e de uma cabeça pensante e crítica?

6ª aposta: Introduzir na formação de professores uma nova visão do ensinar e do aprender – o desenvolvimento das competências do pensar. Na história da educação brasileira, a formação de professores tem sido marcada por um amálgama de, ao menos, três componentes: (1) a idéia de primeiro receber teoria e depois colocá-la em prática, (2) fornecer formação técnica (fase do tecnicismo educacional), (3) propiciar consciência crítica para perceber as contradições da realidade, captar as desigualdades sociais, ir além das aparências para atingir o fundo das coisas. Sabemos que nenhum desses posicionamentos deu conta de melhorar as práticas de formação. Faz-se necessário, hoje, uma mudança de mentalidade sobre o processo do ensinar e aprender por dentro das práticas de formação de professores. Há um razoável consenso hoje em torno de proposições construtivistas: o papel ativo do sujeito na aprendizagem escolar, a aprendizagem interdisciplinar, o desenvolvimento de competências do pensar, a interligação das várias culturas que perpassam a escola etc. A pedagogia estaria empenhada na formação de sujeitos pensantes e críticos, implicando estratégias interdisciplinares de ensino para desenvolver competências do pensar e do pensar sobre o pensar. Escrevi sobre isso recentemente:

O que está em questão é uma formação que ajude o aluno a transformar-se num sujeito pensante, de modo que aprenda a utilizar seu potencial de pensamento por meio de meios cognitivos de construção e reconstrução de conceitos, habilidades, atitudes, valores. Trata-se de investir numa combinação bem-sucedida da assimilação consciente e ativa desses conteúdos com o desenvolvimento de capacidades cognitivas e afetivas pelos alunos visando a formação de estruturas próprias de pensamento, ou seja, instrumentos conceituais de apreensão dos objetos de conhecimento, mediante a condução pedagógica do professor que disporá de práticas de ensino intencionais e sistemáticas de promover o “ensinar a aprender a pensar” (Libâneo, 1998).

A mesma coisa precisa ser dita em relação à formação inicial e continuada de professores. É preciso saber que experiências de aprendizagem podem ser providas nos cursos, encontros, treinamentos que possibilitem aos professores mais qualidade cognitiva no processo de construção e reconstrução de conceitos, procedimentos, valores. Obviamente, isso significa que as ações de formação continuada são ações didáticas, elas próprias consistem de um processo de ensino, de modo que tudo o que queremos que aconteça nas escolas em termos de mudança de atitude dos professores na sala de aula, deve acontecer também nas ações de formação continuada.

7ª aposta: Reavaliar o perfil dos formadores de professores na formação inicial e continuada. Os responsáveis pelos programas e ações de formação inicial e continuada precisam investir na qualificação específica dos formadores de professores. Não é mais aceitável que as licenciaturas mantenham professores que não possuem uma preparação pedagógico-didática. É preciso que dominem princípios elementares da didática, da psicologia da aprendizagem, da teoria do conhecimento, que fique claro para todos que a docência de qualquer conteúdo científico e cultural supõe uma transposição pedagógico-didática e o domínio de saberes pedagógicos (como condição para aprendizagem eficaz), o conhecimento das características sociais e culturais dos aprendentes.



8ª aposta. Os sistemas de ensino e as agências formadoras precisam desenvolver estratégias e procedimentos de avaliação de desempenho dos professores, integrando a avaliação do processo e a avaliação do produto nas instituições formadoras. É preciso investigar mais sobre formas de avaliação dos processos e resultados das ações de formação continuada. Tem havido pouca consciência entre os educadores (especialmente entre os que formam opinião), de que todo o aparato de gestão do sistema e da escola, todo o sistema de formação de professores, todas as lutas pela democratização, somente têm sentido se se projetarem na melhoria da qualidade do processo de ensino e aprendizagem. Serão inúteis as práticas democráticas de gestão, a descentralização, a avaliação institucional externa, a participação dos pais etc. se os alunos não aprimorarem sua aprendizagem, se não aprenderem mais e melhor. Nesse caso, não saberemos se o professor é competente se não soubermos se o aluno aprendeu bem, se dominou os conceitos básicos, se desenvolveu habilidades de pensamento, se soube usar os conhecimentos na prática. Não se trata, obviamente, de estabelecer diagnósticos meramente a partir dos resultados de desempenho do aluno, mas de pesquisar formas avaliativas que contemplem conjuntamente aspectos do processo e dos resultados.

Em trabalhos recentes, Placco (1998) tem investigado pistas para saber como os professores concebem e analisam sua formação e as ações de capacitação e atualização e que representações expressam quanto à sua prática, consciência de suas dificuldades, dificuldades dos alunos e sua participação na exclusão social desses alunos. Ela justifica seu trabalho a partir da constatação de que, nos cursos de formação inicial e continuada, “as qualificações didáticas e pessoais do professor recebem uma atenção periférica. A articulação dessa formação com o cotidiano do professor é ainda menos cuidada; as ocorrências de sala de aula e as suas relações com as questões teóricas e didático-pedagógicas não se inserem na maior parte dos processos formativos”. Essa constatação reforça a necessidade de se aferir em que grau as ações de formação continuada estariam respondendo às necessidades dos professores e do sistema de ensino a partir de critérios pedagógico-didáticos e das demandas sociais de escolarização. Ao mesmo tempo, é desejável que sejam aferidas as mudanças no trabalho do professor junto com resultados efetivos de aprendizagem dos alunos. A produção ou indução de meras mudanças nos discursos dos professores são inócuas se não se verificam mudanças efetivas na prática docente e na aprendizagem dos alunos.

9ª aposta: Ainda e sempre, a necessidade de mudanças nas condições salariais e de trabalho - É absolutamente imprescindível que os professores mantenham as reivindicações por melhores salários, condições de trabalho e plano de carreira. Os professores precisam ganhar respeito pelo seu próprio trabalho. E aqui é preciso formar entre os administradores e professores uma mentalidade em que o desenvolvimento profissional esteja articulado com a progressão na carreira. O sistema de promoção na carreira do magistério precisa prever formas de estímulo à iniciativa individual de autoformação e desenvolvimento profissional, de modo que os professores tenham acesso a melhores níveis salariais.

O educador italiano Mario Manacorda, em 1986, dizia numa entrevista:

Creio que (...) uma educação voltada apenas para a afirmação dos princípios de liberdade, democracia, participação cultural, não basta, porque tal gênero de educação os inimigos da democracia também podem fazer, no plano do discurso. Sem negar ou ignorar esses princípios, considero mais importante que os homens sejam instruídos, isto é, armados de saber, de tal modo que possam participar concretamente da criação de uma vida mais rica, de uma maior capacidade produtiva, com maior participação democrática. Isso significa mais instrução, mais cultura. (...) Mas a cultura hoje não passa somente pelo ler, escrever e fazer contas. Passa pelo conhecimento teórico-prático, conhecimento e uso de novos instrumentos de produção e comunicação entre os homens. É preciso dar instrução, sim, mas como instrumento concreto de conhecimento, de capacidade operativa, produtiva, e de capacidade cognoscitiva.

Se se pode dizer que a justiça social, hoje, no que diz respeito à democratização da educação escolar, é a garantia da qualidade cognitiva e operativa das aprendizagens, para a produção de saberes, numa sociedade e numa escola que inclua todos, certamente valerá a pena continuar apostando na busca de dignidade e credibilidade profissional dos professores a partir da qualidade de sua formação e das suas condições de trabalho.


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