ABSTRACT: From the “Lei das
Escolas de Primeiras Letras” (Educational Act for First Letters), approved in
Brazil on October 15, 1827, and through a parallel with Italy, as for
immigration and illiteracy issues, the author sketches out his own academic and
intellectual itinerary. This is meant to highlight the importance of school as
a strategic element to develop the talents lying dormant in children and
youths, an essential prerequisite for the future of Brazil.
Key words: Immigration and
teaching to read and write. Education history. Teacher itinerary. School and
intellectual development.
Primeiramente
queria agradecer a generosidade dos colegas de meu grupo de pesquisa, o HISTEDBR,
de meu departamento, o DEFHE e de toda a Faculdade de Educação, assim como das
instâncias institucionais da UNICAMP pela sequência de encaminhamentos que
culminou com a aprovação da proposta de concessão do título de professor
emérito pelo Conselho Universitário, no dia 30 de julho do corrente ano.
Quiseram as circunstâncias, ajudadas evidentemente pelo
empenho da direção da Faculdade de Educação e pela boa vontade do magnífico
reitor em ajustar a sua agenda, que o presente ato fosse marcado para este dia
15 de outubro, dia do professor. E, assim é, porque há 175 anos atrás, no dia
15 de outubro de 1827, era promulgada a primeira lei geral de ensino do Brasil
independente.
Após a proclamação da independência política do Brasil, em
1822, instalou-se no ano seguinte a “Assembleia Constituinte e Legislativa”,
que pretendeu equacionar o problema da organização nacional do ensino através
de um projeto que procurava estimular o surgimento de um tratado completo de
educação. Esse projeto, entretanto, não chegou a ser aprovado. Com a dissolução
da Assembleia Constituinte, D. Pedro I outorgou, em 1824, a primeira
Constituição do Império do Brasil, que se limitou a afirmar, no Inciso 32 do
último artigo (179), do último Título (VIII), que “a instrução primária é
gratuita a todos os cidadãos”.
Reaberto o Parlamento em 1826, retoma-se a discussão do
problema nacional da instrução pública, surgindo várias propostas, entre elas o
projeto de Januário da Cunha Barbosa, que pretendia regular todo o arcabouço do
ensino distribuído em quatro graus: o primeiro, denominado “Pedagogias”,
abrangeria os conhecimentos elementares necessários a todos, independentemente
da sua situação social ou profissão; o segundo, os “Liceus”, se voltaria para a
formação profissional, compreendendo os conhecimentos relativos à agricultura,
à arte e ao comércio; o terceiro, denominado “Ginásios”, compreenderia os
conhecimentos científicos gerais, como introdução ao estudo aprofundado das
ciências e de “todo gênero de erudição”; finalmente, o quarto grau, isto é, as
“Academias”, se destinaria ao ensino das “ciências abstratas e de observação,
consideradas em sua maior extensão e em todas as mais diversas relações com a
ordem social, compreendendo-se além disso o estudo das ciências morais e
políticas, contempladas debaixo do mesmo ponto de vista”, como reza o artigo 5º
do projeto (Annaes do Parlamento Brasileiro:
Câmara dos Deputados, 1826, tomo II, sessão de 16 de junho de 1826, p. 150-160,
apud Xavier, 1990, p. 39). Na sequência, o projeto detalhava as finalidades e o
conteúdo da cada grau de ensino.
Essa proposta nem chegou a entrar em discussão. Em lugar de
ideias mais ambiciosas, a Câmara dos Deputados preferiu ater-se a um modesto
projeto limitado à escola elementar, o qual resultou na Lei de 15 de outubro de
1827 que determinava a criação de “escolas de primeiras letras”. A lei
estabelecia, ainda, que nessas escolas os professores ensinariam “a ler,
escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e
proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua
nacional, os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica e
apostólica romana proporcionadas à compreensão dos meninos”. A referida lei, se
tivesse viabilizado, de fato, a instalação de escolas elementares “em todas as
cidades, vilas e lugares populosos” como se propunha, teria dado origem a um
sistema nacional de instrução pública. Entretanto, isso não aconteceu. Em 1834,
por força da aprovação do Ato Adicional à Constituição do Império, o governo
central se desobrigou de cuidar das escolas primárias e secundárias,
transferindo essa incumbência para os governos provinciais. Conforme o
testemunho de José Ricardo Pires de Almeida, as Assembleias Provinciais
procuraram logo fazer uso das novas prerrogativas votando “uma multidão de leis
incoerentes”
(Almeida, 1989, p. 64) sobre instrução
pública afastando-se, portanto, da ideia de sistema. A oferta de escolas, no
Brasil, iria continuar rarefeita ainda por muitos anos.
Enquanto isso, o mundo se transformava e, em consequência,
também o Brasil. Marx, em carta a Engels, datada de 8 de outubro de 1858, dizia
que “a verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial, pelo
menos em suas grandes linhas, assim como uma produção condicionada pelo mercado
mundial. Como a terra é redonda, essa missão parece acabada com a colonização
da Califórnia e da Austrália, assim como a abertura do Japão e da China. Para
nós, a questão difícil é esta: sobre o continente europeu, a revolução é
iminente e ela toma um caráter socialista, mas não será ela abafada nesse
pequeno canto, já que, sobre um terreno muito mais vasto, o movimento da
sociedade burguesa é ainda ascendente?” (Marx & Engels, 1973, p. 15).
A crise europeia parecia sem saída, conforme testemunha Eça
de Queiroz em artigo de 1888: “Não sei o que aí se passa nessa viçosa América.
Mas aqui neste ressequido continente, há já mais de dois anos, aqueles que se
distinguem por conhecer as coisas das nações recomeçam a inquietar-se e a
gritar sombriamente: a situação da Europa é medonha. Sob as crises que a
sacodem, já a máquina se desconjunta. Nada pode suster o incomparável desastre.
Este fim de século é um fim de mundo!” (Queiroz, apud Machado, 1999, p. 29-30).
Mas a crise, que parecia sem saída, encontra uma válvula de
escape no movimento imigratória, como constata o próprio Eça de Queiroz: “Para
o proletariado a emigração é a solução material da miséria, para o Estado é o
remédio do pauperismo! Poucos governos hão, com efeito, na Europa, que não se
tenham valido da emigração como um paliativo, indireto, mas eficaz, à densidade
de população, aos acréscimos da miséria, às crises industriais” (idem, ibid.,
p. 31).
Assim, a partir do terceiro quartel do século XIX, uma onda
imigratória se desloca da Europa para o Brasil, proveniente de diversos países,
com destaque para a Itália.
A Itália consumara seu processo de unificação em 1861, sob
a liderança do Piemonte. Em consequência, a “Lei Casati”, aprovada no Piemonte
em 1859, é estendida a todo o país. Esta lei, marco decisivo da história da
instrução pública italiana, é estruturada em cinco capítulos com 380 artigos,
sendo que apenas o último capítulo trata brevemente do ensino elementar (De
Vivo, 1994, p. 19). A escola primária permanece ainda fora da alçada do governo
central, devendo ser mantida pelos municípios que, como no Brasil, não
dispunham dos fundos necessários. Mas, ao longo da segunda metade do século
XIX, desenvolve-se uma ampla campanha pela avocação do ensino primário ao
Estado nacional, movimento esse que se torna vitorioso em 1911 com a reforma
Daneo-Credaro, a partir da qual se dá o processo de instalação do sistema
nacional de ensino que conduzirá à universalização da escola elementar e à erradicação
do analfabetismo (Ravaglioli, 1990, vol. 3, p. 144). Mas, até a virada do
século XIX para o XX, a Itália vivia uma situação contraditória, tendo metade
de sua população analfabeta e excesso de pessoal formado em nível superior, o
que levou Ernesto Nathan a escrever em 1906: “Em relação à nossa posição social
somos muito cultos e muito ignorantes, de um lado atormentados pelo
analfabetismo, de outro pelo universitarismo” (Barbagli, 1974, p. 29).
A posição conservadora procurava impedir o avanço da escola
popular. A Revista Civiltà Cattolica
em 1872 considerava estranho afirmar que a instrução fosse meio indispensável
ao bem-estar dos homens. Dizia: “meio seguríssimo de bem-estar material é o
trabalho e a ausência de vícios. Ora, ao trabalho se requerem braços, não o
alfabeto e do bom costume cuida a boa educação paterna e a instrução religiosa”
(Catarsi, 1985, p. 20). Mas essa posição reacionária não era privilégio dos
católicos. Um Congresso de grandes proprietários reunido no final do século XIX
na Sicília “teve a coragem de propor, para toda reforma, a abolição da
instrução elementar, para que os camponeses e os mineiros não pudessem, lendo,
absorver as novas ideias” (idem, ibid., p. 31).
Inversamente, porém, o movimento migratório se converteu numa
fonte de experiências e de pressões contra o analfabetismo na Itália. A pressão
dos países de imigração, em especial os Estados Unidos, conduziu o governo a
medidas favoráveis à expansão escolar. E a própria experiência da emigração
exerceu influxo positivo junto à população em direção às escolas: “Não sei ler,
mas mando os meus filhos à escola porque me parece bom que aprendam a ler; e os
mando também por conselho e empenho particular de meu marido”, afirmava uma
camponesa cujo marido estava trabalhando na Argentina (idem, ibid., p. 42). E
os emigrantes que retornavam se convertiam em arautos da propaganda contra o
analfabetismo.
Assim, a maioria dos emigrantes que deixava a Itália era
composta de analfabetos que, não tendo possibilidade de trabalho no velho
mundo, decidiam partir para “fazer a América”. E se apinhavam nos navios cujos
comandantes os deixavam nas costas brasileiras dizendo: chegamos; a América é
aqui. Foi dessa forma que Antonio Saviani deixou Treviso na região do Vêneto,
tendo encontrado Maria Clementina Pansani, também originária do Norte da
Itália, com quem se casou em Mogi Guaçu no dia 19 de setembro de 1908. Desse
casamento nasceu, no ano seguinte, em 25 de agosto de 1909, Júlio Saviani, meu
pai, filho mais velho de 12 irmãos. Do outro lado da península, do Sul da
Itália, saiu da Calábria Antonio Polimeno, que se casou com Carmela Mamelli,
que viera da Sardenha. Desse casamento nasceu, em Jacutinga, no Sul de Minas
Gerais, aos 24 de setembro de 1911, Sebastiana Polimeno, minha mãe, filha mais
velha de 10 irmãos.
Recorde-se que em 1911, ano em que Sebastiana nasceu, era
instituída na Itália a reforma Daneo-Credaro, que colocou a escola primária sob
a égide do Estado nacional. Mas aqui no Brasil continuavam raras as escolas e,
assim, nem ela nem Júlio chegaram a frequentar, por um dia sequer, os bancos
escolares. Ambos descendiam dos imigrantes que aqui vieram para substituir a
mão-de-obra escrava nas fazendas de café. E, transitando pelas terras cafeeiras
do Oeste paulista, suas vidas se cruzaram e vieram a se casar no dia 9 de
novembro de 1929, em Itapira (SP). Desse casamento nasceu, em 30/8/1930, a
primeira filha, Deolinda, que não sobreviveu aos doze meses de vida, seguida de
Alice, nascida em 12 de maio de 1932, Ivany, de 7 de junho de 1934, e
Hermógenes, de 5 de maio de 1937, todos nascidos em fazendas do município de
Itapira. O quinto filho, Adamastor, de 12/11/1939, viveu apenas dez meses. O
sexto veio a se chamar Adivaldo, que nasceu no dia 26 de dezembro de 1941,
sendo seguido por mim, Dermeval, de 25 de dezembro de 1943, e de Eduviges, de 9
de fevereiro de 1946. Nós três nascemos na fazenda Santo Antonio, situada no
hoje Santo Antonio de Posse, que à época se chamava Posse de Ressaca e
pertencia à Comarca de Mogi Mirim. Ainda no interior de São Paulo, mas já na
fazenda São Pedro no município de Amparo, nasceria Nereide, a penúltima filha,
no dia 13 de novembro de 1947.
Meu pai não frequentou a escola, mas com a ajuda de meu
avô, se alfabetizou e ganhou grande gosto pela leitura. Lia tudo o que lhe caía
diante dos olhos: jornais, rótulos, fascículos, romances de folhetim. Com isso
atingiu um bom domínio do alfabeto, o que lhe permitiu alfabetizar outras
pessoas, inclusive minha mãe. Após a extenuante jornada de trabalho na roça, ele
reunia aqueles que desejavam aprender a ler e escrever e passava-lhes o que
sabia. Era, também, o sanfoneiro do arraial. Através de parentes residentes em
São Paulo encomendava partituras que ensaiava à noitinha para poder tocar as
novidades do momento nos bailes dos fins de semana nas redondezas.
Com isso, ganhava um dinheirinho que servia, no final do
ano, para completar a conta do armazém. Com efeito, sabe-se que o regime de
trabalho então generalizado nas fazendas adotava a forma do pagamento anual,
obrigando-se o colono a abastecer-se no armazém da própria fazenda. Ao final do
ano, feitas as contas, era comum o agricultor, após ter trabalhado o ano todo
de sol a sol, estar ainda com saldo devedor, tal era o grau de exploração da
sua força de trabalho. O ofício de sanfoneiro vinha, então, em socorro do
camponês. Meus irmãos mais velhos também desenvolveram o veio musical, mas se
inclinaram mais para o violão.
Guardo poucas lembranças dessa fase, sem conseguir
distinguir com clareza aquelas que teriam decorrido da vivência pessoal e
aquelas que se relacionavam com os relatos dos pais e irmãos mais velhos. Além
de alguns fatos pitorescos, ficaram gravadas as doenças de infância, o
desespero de minha mãe diante da ameaça de mortalidade infantil (ela perdeu a primeira
filha e também aquele que seria o quinto) e a situação de penúria (lembro-me
que saíamos à margem da estrada de ferro catando serralha para compor a
alimentação familiar). Meus três irmãos mais velhos só estudaram até o terceiro
primário porque nas escolas rurais da época não havia o primário completo. O
máximo que se podia atingir era o terceiro ano.
Em conversas de família surpreendi, às vezes, meu pai
afirmando que as coisas iam relativamente bem até 1929, quando se casou. E
comentava: foi só eu me casar e as coisas começaram a degringolar. Mas não se
tratava de mera coincidência. 1929 foi o ano da grande crise do capitalismo
expressa na quebra da bolsa de Nova Iorque, que repercutiu fortemente na
economia brasileira baseada na monocultura do café, que passou por uma séria
crise de superprodução.
Nesse contexto, em outubro de 1948, as dificuldades da vida
da roça que impossibilitavam a sobrevivência de uma família composta de casal e
sete filhos (o último, de nome Antonio, nasceria depois, já em São Paulo, em 30
de março de 1950) forçaram meu pai a se transferir com a família para a
capital, São Paulo, onde se empregou como foguista de caldeira na indústria. O
mesmo caminho foi seguido pelos irmãos mais velhos que também se tornaram
operários nas fábricas da Capital.
Fiz o curso primário no Grupo Escolar de Vila Invernada, à
época (1951-1954) um galpão de madeira na periferia de São Paulo.
Pedagogicamente era uma escola tipicamente tradicional. Já não havia mais a
palmatória, mas a régua, às vezes, desempenhava a mesma função. O diretor era
uma figura temida. Os exames finais de cada série eram feitos na própria
escola, mas não era a professora que formulava as questões e as aplicava. Esses
exames eram feitos perante o inspetor do Estado.
Iniciei o curso de admissão ao ginásio em 1955, na Paróquia
de São Pio X e Santa Luzia, de Vila Leme, ainda em São Paulo, mas em 27 de
setembro do mesmo ano, segui com o vigário da referida paróquia para Cuiabá.
Ali prestei exames de admissão ao ginásio no Liceu Salesiano São Gonçalo.
O curso ginasial foi feito no Seminário Nossa Senhora da
Conceição, de Cuiabá, entre 1956 e 1959.
O primeiro ano colegial foi feito em 1960, no Seminário do
Coração Eucarístico de Campo Grande, hoje capital do estado de Mato Grosso do
Sul. Em 1961, de novo no Seminário Nossa Senhora da Conceição de Cuiabá, cursei
o segundo ano que era também o último ano do Seminário Menor.
Em 1962, ingressei no Seminário Maior cujos estudos
filosóficos iniciei no Seminário Central de Aparecida do Norte, estado de São
Paulo. Aí cursei dois anos de filosofia, sendo que o segundo ano coincidiu com
o primeiro ano de faculdade em decorrência do vestibular que prestei na
Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, em fevereiro de
1963. Isto foi possível em decorrência de um convênio entre a Faculdade
Salesiana de Lorena e o Seminário Central Filosófico de Aparecida do Norte,
mediante o qual o curso de
Filosofia de Aparecida passava a funcionar
como uma secção da Faculdade de Lorena, desde que, obviamente, os alunos
interessados em cursar a Faculdade fossem aprovados nos exames vestibulares
realizados em Lorena.
Registro que, quando me encontrava no seminário, ao cogitar
da hipótese de retornar para casa, nunca me imaginava seguindo estudos em nível
superior. Eu me via saindo de manhã com a marmita debaixo do braço, pegando o
ônibus e me dirigindo à fábrica para trabalhar, tal como faziam meus irmãos
mais velhos. Universidade era uma coisa que nem remotamente fazia parte de meu
universo familiar. A ideia que prevalecia era a de que estudo, de modo especial
os de nível superior, não era coisa para pobres. Contudo, quando deixei o
seminário minha situação era inteiramente outra. Eu já havia sido aprovado no
vestibular e me via diante do seguinte desafio: provar que pobre também podia
ter êxito na universidade; por que não? Com essa ideia decidi que iria insistir
em encontrar um trabalho no período da manhã de modo a não abrir mão, em
nenhuma hipótese, do curso de filosofia que funcionava no período da tarde.
Em 1964, voltei a morar em São Paulo, onde residia minha
família. Solicitei, então, transferência para a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Como eu não podia estudar sem trabalhar, procurei
emprego em banco. Mas não foi fácil. Fazia testes que eram aprovados, mas a
resposta invariável era: só temos vagas para o período da tarde. Depois de várias
tentativas e lançando mão de meu poder de argumentação, consegui convencer o
gerente da seção de câmbio do Banco Bandeirantes do Comércio a me admitir no
horário das 7:00 às 13:00 horas para fazer aquele mesmo trabalho que ele previa
para a tarde, abrindo-lhe a possibilidade de que, no segundo semestre, eu
poderia conseguir na universidade uma transferência para um outro período.
Assim, finalmente, consegui o emprego. Já era o mês de maio. E as tarefas eram
tantas que nas férias de julho eu trabalhava das 7 da manhã até às 20:30h e,
nos dias de balanço, até a meia noite, ganhando horas extras. Desse modo, o
gerente em nenhum momento veio me cobrar a mudança de horário. A remuneração,
entretanto, era o salário mínimo. Dado que havia necessidade – e eu fazia
questão – de ajudar na manutenção da casa e precisava também pagar os estudos,
não sobrava para o almoço. Saía de casa às 5:30h e retornava para jantar por
volta das 22:30h, uma vez que as aulas na Faculdade iam até às 20:00h (as
disciplinas pedagógicas de licenciatura eram encaixadas no início do período
noturno) e era preciso tomar duas conduções para ir da Universidade até minha
casa. Em tais circunstâncias, quando foram abertas as inscrições para concurso
no Banco do Estado de São Paulo, efetuei minha inscrição, prestei os exames e
ingressei em 2 de dezembro de 1965. Com uma remuneração melhor foi possível
minorar as dificuldades até então enfrentadas.
Sendo de uma família operária, eu vivia num bairro
periférico de São Paulo. Assim, nesses conturbados anos da década de 1960,
enquanto meu pai e meus irmãos participavam das greves nas fábricas e nas ruas,
eu participava das assembleias e passeatas estudantis. Em 1966, meus irmãos
participaram de um concurso de música popular promovido pela rádio Marconi,
gravando em fita duas músicas compostas por um deles, o Hermógenes. Uma delas,
que não foi apresentada porque censurada, se chamava Marcha da Liberdade ou Brasil com “s” e uma de suas estrofes dizia:
Camponeses, operários e estudantes. Nós lutamos por um
mesmo ideal. Nós queremos ver um Brasil com “s” E muito mais nacional.
Vê-se que a letra dessa música espelha bem o momento
político, assim como a situação concreta vivida pela minha família. Com efeito,
éramos uma família operária, mas de origem camponesa, como já foi assinalado. A
aliança operário-estudantil-camponesa, tão bem retratada na música de meu
irmão, refletia, então, uma bandeira das esquerdas e, ao mesmo tempo,
correspondia à situação em que vivíamos.
Ao longo do curso de filosofia, procurei aliar a militância
estudantil com o estudo sério das disciplinas que integravam o currículo.
Apresentei, então, nas diferentes matérias como Ética, Estética, Filosofia da
História, Filosofia do Desenvolvimento, Filosofia da Religião, História da
Filosofia, Sociologia, Economia Política, trabalhos com alguma densidade de
reflexão própria.
Antes de eu iniciar o quarto ano, o Prof. Joel Martins, que
lecionava Psicologia Educacional no Curso de Pedagogia e, como membro do
Departamento de Pedagogia estava preocupado com a carência de professores de
Filosofia da Educação, me indagou se eu não gostaria de me especializar em
Filosofia da Educação. Estava ele preocupado com o fato de que a cadeira, que
estava sendo ministrada pelo Prof. Stanley Krauss, iria vagar em julho porque o
referido professor voltaria ao seu país, os Estados Unidos. Dado o meu
interesse, o Prof. Joel me propôs um plano de estudos e eu, de minha parte,
tomei a iniciativa de me matricular, ainda que como ouvinte dado que era aluno
de Filosofia, numa das opções do quarto ano de Pedagogia chamada “Questões
Especiais de Educação”. Numa de minhas conversas com o Prof. Joel, sobre o
plano de estudos que estava seguindo, disse-lhe que às vezes me ocorria a forma
em que eu daria um curso de Filosofia da Educação. Ele solicitou-me que
colocasse no papel e lhe mostrasse. Apresentei-lhe, então, um plano de curso
que ele considerou muito bom. E quando, de fato, em julho de 1966, a cadeira de
Filosofia da Educação ficou vaga no Curso de Pedagogia, o Prof. Joel a assumiu
interinamente e me indicou como monitor. A disciplina tinha uma carga horária
de quatro aulas semanais das quais ele me destinou duas aulas. Quando lhe
perguntei o que eu deveria fazer naquelas aulas, ele me respondeu: “vá
desenvolvendo o seu plano”.
Passei, então, a trabalhar aquele plano de curso com os
alunos do terceiro ano de pedagogia. Foi assim que completei o meu 4º ano de
Filosofia, já me iniciando no magistério de Filosofia da Educação. Em tom de
humor eu dizia, às vezes, que eu fora uma espécie de monitor regente, pois era
ainda aluno, mas já desenvolvia um programa próprio que, aliás, foi, no ano
seguinte, encaminhado ao MEC como a programação da disciplina Filosofia da
Educação para efeitos do reconhecimento do Curso de Pedagogia da PUC-SP.
A partir de 1967, iniciei oficialmente minha atividade
docente simultaneamente no curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e no Ensino Médio, no Colégio Estadual de São João
Clímaco, depois denominado Colégio Estadual Prof. Ataliba de Oliveira e, no
segundo semestre do mesmo ano, no Curso Normal do Colégio Sion. Nesse ano, em
razão do pequeno número de aulas, tive que manter o trabalho no Banco do Estado
de São Paulo, por uma questão de sobrevivência. Em 1968, aumentadas as aulas,
demiti-me do Banco para me dedicar integralmente ao magistério. Em 1970, em consequência
de aprovação em concurso público, assumi, como efetivo, a cadeira de Filosofia
do Colégio e Escola Normal Estadual “Plínio Barreto”, em São Paulo, Capital.
Iniciei a carreira de professor com muito entusiasmo e
dedicação. Especialmente no nível universitário, eu considerava que o professor
não poderia ser apenas um repetidor, um transmissor de conhecimentos já
compendiados; ele deveria ser também e, sobretudo, um pesquisador, um criador,
alguém que se posicionasse ativamente em relação à sua área, tendo condições de
contribuir para o seu desenvolvimento.
Em consequência, passei a produzir eu próprio aquilo que
chamei de “textos de apoio para seminários”, a partir dos quais se desenvolviam
as aulas, estimulando-se o trabalho intelectual e a reflexão crítica dos
alunos.
Paralelamente às atividades docentes, iniciei formalmente,
a partir de fevereiro de 1968, as pesquisas relativas ao doutoramento,
pesquisas essas que resultaram na tese “O conceito de sistema na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, defendida em 18 de novembro de 1971 e
publicada em livro com o título Educação
brasileira: estrutura e sistema, em 1973.
A partir de 1972, passei a trabalhar também na
Pós-Graduação ministrando, em nível de mestrado, a disciplina “Problemas da
Educação”, primeiramente no Instituto Educacional Piracicabano, que veio a se
converter na Universidade Metodista de Piracicaba, a UNIMEP, no segundo
semestre e, a partir de 1973, também na PUC-SP. Data daí, do segundo semestre
de 1972, meu primeiro contato com a UNICAMP. A Faculdade de Educação estava
sendo fundada e seu primeiro diretor, o Prof. Montezuma, convidou-nos para uma
conversa. Alguns professores da UNICAMP estavam inscritos como nossos alunos no
mestrado de Piracicaba: O professor José Dias Sobrinho e as professoras Rosália
Aragão e Maria Inês Fini. À época, éramos quatro os professores da PUCSP que
havíamos assumido o mestrado em Piracicaba: Newton Aquiles Von Zuben, Geraldo
Tonaco, Antônio Joaquim Severino e eu. Em função dos nossos horários daquele
ano na PUC-SP, os professores Aquiles Von Zuben e Geraldo Tonaco iam a
Piracicaba às segundas e terçasfeiras. O Prof. Severino e eu íamos às sextas e
sábados. Assim, numa sexta-feira, Severino e eu interrompemos nossa viagem de
São Paulo para Piracicaba, fazendo uma parada em Campinas para termos um
encontro com o Prof. Montezuma. Ele, com um certo ar messiânico, nos expôs por
um bom tempo as ideias em torno da nova faculdade que estava surgindo. Não
chegou a fazer uma proposta formal, deixando em aberto o caminho para novas
conversas e eventual colaboração. De nossa parte, também não avançamos nenhuma
proposta concreta. Saímos daquela reunião, Severino e eu, nos perguntando sobre
os rumos que tomariam aquela iniciativa. As idéias eram ainda um tanto
nebulosas e não havia também clareza sobre as condições reais em que a
faculdade iria se apoiar. Demos seqüência ao nosso trabalho em Piracicaba,
sendo que a partir de 1973 passamos a nos deslocar os quatro professores no
início da semana, indo às segundas-feiras pela manhã e retornando a São Paulo
nas terças à tarde.
Além dos professores da UNICAMP, um grupo ainda maior de
professores da recém-fundada Universidade Federal de São Carlos também estava
matriculado no mestrado do Instituto Educacional Piracicabano. Assim, acabei
sendo assediado para atuar junto à UFSCAR. Dessa forma, enquanto o professor
Aquiles, em 1974, se transferia para a UNICAMP, eu, a partir do segundo
semestre de 1975, assumia um contrato em tempo integral na UFSCAR, onde acabei
liderando a formulação de uma proposta inovadora de Pós-Graduação em convênio
com a Fundação Carlos Chagas, assumindo a responsabilidade de implantar e
coordenar o Programa. Tendo reassumido minhas funções em 1978 na PUC-SP, onde
passei a coordenar o mestrado e doutorado em Filosofia da Educação, o Prof.
Casemiro dos Reis Filho, que já se encontrava na UNICAMP, propôs que eu viesse
para esta universidade. Respondi-lhe que eu me sentia cansado de estar viajando
toda semana desde 1972 e que eu preferia ficar, por um tempo, apenas na PUC-SP.
Ele, em todo o caso, solicitou-me uma cópia do curriculum vitae, argumentando que, caso aparecesse uma vaga no
departamento, ele gostaria de propor o meu nome para eventual contrato
posterior. E, de fato, no ano seguinte, 1979, me chegou a informação que o
Departamento de Filosofia e História da Educação (DEFHE) da Faculdade de
Educação da UNICAMP havia aprovado proposta de contratação. Em decorrência, em
1980, iniciei minhas atividades na UNICAMP, em regime de Turno Completo, o que
me possibilitava compatibilizar as novas funções com a continuidade do trabalho
que estava desenvolvendo na PUC-SP.
Se na PUC-SP a área dominante de minhas atividades de
ensino e pesquisa era a filosofia da educação, na UNICAMP o foco se deslocou
para a história da educação, dadas as peculiaridades do departamento que me
acolheu. Assim, em 1986, embora já tivesse sido contratado como docente no
nível MS-4, submeti-me ao concurso de livre docência em história da educação e,
ainda que pudesse fazê-lo a partir da apresentação de minha produção científica
posterior ao doutorado, preferi elaborar e submeter à defesa uma nova tese,
tendo realizado a pesquisa “O Congresso Nacional e a educação brasileira:
significado político da ação do Congresso Nacional no processo de elaboração
das leis 4.024/61, 5.540/68 e 5.692/71” que, uma vez aprovada, deu origem ao livro
Política e educação no Brasil: o papel do Congresso Nacional na legislação
do ensino, cuja primeira edição data de 1987. A partir daí, diante dos
reiterados convites para que eu passasse ao regime de Dedicação Integral à
Docência e à Pesquisa, decidi responder afirmativamente. Em consequência, a
partir e janeiro de 1989, desliguei-me da PUC-SP, mudei-me para Campinas e
passei a manter vinculação exclusiva com a UNICAMP.
Eis que o menino pobre, filho de colonos que nunca haviam
estudado numa escola, saído da vizinha Santo Antonio de Posse, depois de muitas
peripécias e por meio de um longo “détour”, volta a esta região e tem seu nome
ligado a uma grande universidade, uma das mais importantes do país.
Registro essa trajetória não para tirar a conclusão de que,
dependendo do esforço de cada um, as oportunidades estão abertas para todos,
como tenderia a concluir a concepção conservadora, de exaltação da ordem social
vigente. Nem para considerar que se trata de uma exceção que confirma a regra
que, necessariamente, tende a excluir todas as pessoas de origem humilde.
Afastemos esse maniqueísmo. Penso que essa trajetória, como a de muitos outros
filhos de origem camponesa ou operária, mostra a importância da escola e o
verdadeiro crime de lesa-pátria que é a sua falta. Por isso, em uma entrevista
concedida há dois anos atrás, ao responder a uma pergunta sobre as consequências
sociais e afetivas da repetência, respondi que para as crianças e adolescentes,
assim como para as suas famílias, a repetência – e agora posso acrescentar
também a falta de escolas – configura, objetivamente, uma situação dramática.
Utilizei o advérbio “objetivamente” porque, ainda que do ponto de vista
subjetivo, se encontrem maneiras de conviver com essa situação
racionalizando-a, por assim dizer, por meio de uma concepção traduzida em
frases como “não dá para o estudo”, “não tem cabeça boa” etc., os reflexos na
situação dessas famílias são muito sérios porque lhes retiram a expectativa de
melhoria de vida o que significa, na prática, a cassação do seu futuro.
Entretanto, para lá dos aspectos subjetivos e objetivos das famílias
individualmente consideradas, os reflexos são da maior gravidade para o próprio
país, tendo em vista a quantidade de talentos promissores que deixam de ser
desenvolvidos. De fato, o país que não desenvolve as novas gerações, isto é,
que não propicia à sua população de crianças e jovens uma formação adequada,
está cassando o próprio futuro. O fato do Brasil ter adiado, desde a lei das
escolas de primeiras letras, de 15 de outubro de 1827, vindo a ter uma outra
lei nacional de ensino primário apenas em 1946 e ter adentrado o século XXI sem
ainda ter conseguido universalizar o ensino fundamental, pode ser considerado
como uma verdadeira cassação do futuro do país.
Minha vinculação à UNICAMP é carregada de simbologia. Em
termos pessoais, porque foi aqui que conheci Maria Aparecida Dellinghausen
Motta, filósofa e poeta de rara sensibilidade, a quem me liguei definitivamente
em 1984 e que me deu Benjamim Motta Saviani, nascido em 12 de novembro de 1988,
que é, de fato, aquilo que seu nome significa: filho da felicidade. E em termos
intelectuais, profissionais e acadêmicos, porque meu vínculo com a UNICAMP
expressa total coerência com a luta em defesa da escola pública que marcou e
vem marcando toda a minha trajetória educativa. Minha própria atuação na PUC-SP,
a partir da qual fui guindado, sem o buscar, à posição de liderança do
movimento educacional, trazia fortemente essa marca. E a PUC-SP, apesar de não
ser uma instituição pública, se revelou um espaço adequado a esse objetivo,
especialmente no contexto da ditadura militar, quando as instituições públicas
passaram por vários tipos de constrangimento. Mas é forçoso constatar que a
plenitude da coerência entre meus propósitos e o espaço institucional de
atuação veio a se configurar a partir do momento em que pude optar, de forma
irrestrita, pela UNICAMP.
Assim, posso dizer que, avesso à busca de reconhecimento,
tendo sempre encarado o trabalho que realizo como decorrente de um alto senso
de responsabilidade perante a gente sofrida à qual me sinto ligado, perante a
sociedade e perante o nosso país, não desejando e, menos ainda, buscando
honrarias, se há um título que me faz feliz e que, devo confessar, no fundo eu
desejei, é este que recebi da UNICAMP e que hoje está solene e publicamente me
sendo outorgado.
Planos? Sim, muitos planos. Mas não vou enunciá-los de
forma a permitir-lhes que me cobrem por eles a prazo certo.
Há planos imediatos, como a conclusão da pesquisa que
desenvolvo com apoio do CNPq sobre a “História das idéias pedagógicas no
Brasil”; o projeto “O espaço da pedagogia no Brasil: perspectiva histórica e
teórica” que devo realizar de agora até setembro do próximo ano como
colaboração para a consolidação do Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Ribeirão Preto, da USP, instalado neste ano de
2002; um projeto específico, que deve durar cerca de três anos, sobre as
máximas e provérbios em educação. Mas há os planos de vida que, estes, por serem
ou muito mais simples ou de grande transcendência, vão sempre aguardando
momentos mais propícios e perdendo espaço para os projetos mais suscetíveis às
pressões institucionais ou das pessoas com as quais sou solidário em nosso
pertencimento ao campo educacional. Entre os planos mais simples estão aqueles
textos de apoio para seminários que organizei no início de minha carreira
docente e cuja transformação em livros foi um projeto sempre adiado, mas nunca
abandonado; igualmente os programas de disciplinas que ministrei e que também
planejara transformar em livro. Entre os projetos mais recentes encontram-se
reedições atualizadas de livros como Educação
e questões da atualidade, publicado simultaneamente em português e espanhol
em 1991, já há bastante tempo esgotado, o mesmo ocorrendo com Ensino público e algumas falas sobre
universidade, cuja primeira edição é de 1984. Um outro livro que gostaria
de publicar e que é relativamente fácil de viabilizar é o que eu chamaria de
“Prefácio à educação brasileira”, em que, partindo dos cerca de quarenta
prefácios que redigi para livros sobre educação, complementados pelas
dissertações e teses orientadas, eu buscaria traçar a trajetória histórica da
educação brasileira nos últimos
30 anos. Gostaria, ainda, de publicar em
breve um livro que possivelmente se chamaria “O novo Plano Nacional de Educação
comentado”, em que eu analisaria, capítulo por capítulo, o teor completo do
texto do PNE, aprovado em 9 de janeiro de 2001 pelo Congresso Nacional e
parcialmente vetado pelo presidente da República.
Entre os planos de grande transcendência, menciono dois. A ideia
do primeiro deles me veio em decorrência de um convite. Em 1998 três colegas da
UNESP, Rosa Fátima de Souza, Vera Teresa Valdemarin e Jane Soares de Almeida,
publicaram um livro chamado O legado
educacional do século XIX. No ano passado, Jane me falou sobre a intenção
de se publicar, agora, um novo livro tratando do “Legado educacional do século
XX” (Souza; Valdemarin; Almeida, 1998), convidando-me para participar do
projeto. Enquanto eu pensava nessa ideia, tive contato com o livro de Thomas
Hobbes (1990), Behemoth ou o longo
parlamento. O livro é escrito na forma de diálogo entre uma pessoa jovem
que formula as questões e uma pessoa mais velha que explica os acontecimentos.
Daí me veio uma grande vontade de construir um livro tratando do legado
educacional do século XX a partir de um diálogo com meu filho Benjamim, em que,
aproveitando sua curiosidade e seu interesse pela história e pela genealogia,
seriam formuladas as perguntas e eu iria discorrendo sobre a trajetória da
educação no desenvolvimento da sociedade brasileira ao longo do último século.
Com efeito, perpassam o século três gerações: meu pai nasceu no início, em
1909; eu me encontro na metade (1943-1944) e Benjamim nasceu no final do
século, em 1988. Seria uma boa oportunidade de entrelaçarmos nossas vidas com
os acontecimentos que cobriram todo o século XX.
Finalmente, está de pé o projeto de longo alcance que
enunciei quando da publicação do livro Pedagogia
histórico-crítica: primeiras aproximações, em 1991. Ali eu dizia no
prefácio que a pedagogia histórico-crítica, proposta por mim, é uma teoria que
está em processo de elaboração através de diferentes estudiosos. De minha
parte, venho me dedicando a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com
ritmo variável e sem prazo para sua conclusão, por meio da qual pretendo
rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas, tendo como guia o
conceito de “modo de produção”. Trata-se de explicitar como as mudanças das
formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas
formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo
de transformação do modo de produção correspondente. É um estudo que não se
move sob o acicate das urgências imediatas de conjuntura, mas que se propõe a
captar o movimento orgânico definidor do processo histórico; é, como diria
Gramsci, uma tarefa “für ewig”, isto é, de caráter duradouro e que justifica
toda uma vida. Pretendo, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a
pedagogia histórico-crítica de modo a viabilizar a configuração consistente do
sistema educacional em seu conjunto sob o ponto de vista dessa concepção
educacional.
Como se vê, não é necessário que se preocupem em me dar
trabalho. De fato, com tantos projetos, com tantas idéias fervilhando, é
impossível que eu pare de trabalhar. A conclusão a que chego é, pois, a
seguinte: quanto mais me derem trabalho, quanto mais se multiplicam as
solicitações, mais eu tenho que me ater aos projetos mais simples e de menor
fôlego, postergando os mais importantes. Daí, o apelo: deixemme livre, reduzam
suas expectativas, pois, desse modo, poderei me concentrar nos projetos de
maior transcendência, cujos benefícios serão mais amplos e mais duradouros.
Agradeço a todos por esse momento de felicidade, mas, ao
mesmo tempo, de grande responsabilidade. Ter o nome ligado à UNICAMP na figura
do professor emérito traz, sem dúvida, prestígio. Mas ao bônus aí representado
se liga indissoluvelmente o ônus de manter sempre dignificada essa vinculação.
Por outro lado, sabemos que o prestígio da Instituição advém do trabalho das
pessoas que nela atuam, em especial o seu corpo docente. Esperamos, então, que
a UNICAMP também seja digna das pessoas que a construíram e que a vêm
construindo, entre as quais me incluo. E a formulação dessa expectativa soa,
mesmo, como um alerta nesses tempos particularmente difíceis para as
universidades públicas que apresentam sinais visíveis de desagregação,
parecendo navegar à deriva, como naus sem rumo atingidas pelos ventos da
chamada diversificação de modelos, marca distintiva da atual política de ensino
superior que está em curso em nosso país. Oxalá se encontrem, do interior da
Instituição, forças suficientes para resistir a essa maré montante e restaurar
o sentido clássico da universidade. Em verdade, como já disse em outro lugar,
em matéria de educação é mister estarmos constantemente empenhados em superar a
dicotomia entre tradicional e moderno, guiando-nos pelo critério do “clássico”,
que consiste em encontrar nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os
métodos e as formas da prática universitária.
Muito obrigado a todos.
Recebido e aprovado em
outubro de 2002
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