A
reabertura de estudos e discussões sobre Didática, como disciplina e
campo de estudos, parece refletir mais um momento de crise em sua
trajetória histórica. Será, pois, conveniente, revisitar esse percurso
para que se pondere em que medida os processos de gênese e a evolução
dessa disciplina poderão trazer esclarecimentos sobre seu objeto de
estudos e a delimitação de seu campo. Pode-se, também, perguntar como o
papel e o significado atribuídos a Didática no passado afetam seus
problemas atuais, especialmente os que dizem respeito à autonomia do seu
campo e ao relacionamento deste com áreas afins.
Houve Um Tempo de Didática Difusa
Como
adjetivo - didático, didática - o termo é conhecido desde a Grécia
antiga, com significação muito semelhante à atual, ou seja, indicando
que o objeto ou a ação qualificada dizia respeito a ensino: poesia
didática, por exemplo. No lar e na escola, procedimentos assim
qualificados -didáticos - tiveram lugar e são relatados na história da
Educação. Como objeto de reflexão de filósofos e pensadores, participam
da história das ideias pedagógicas.
A
situação didática, pois, foi vivida e pensada antes de ser objeto de
sistematização e de constituir referencial do discurso ordenado de uma
das disciplinas do campo pedagógico, a Didática. Na longa fase que se
poderia chamar de didática difusa, ensinava-se intuitivamente e/ou
seguindo-se a prática vigente. De alguns professores conhecemos os
procedimentos, podendo-se dizer que havia uma didática implícita em
Sócrates quando perguntava aos discípulos: "pode-se ensinar a virtude?"
ou na lectio e na disputatio medievais. Mas o traçado de uma linha
imaginária em torno de eventos que caracterizam o ensino é fato do
início dos tempos modernos, e revela uma tentativa de distinguir um
campo de estudos autônomo.
Século XVII: surgimento da Didática
A
inauguração de um campo de estudos com esse nome tem uma característica
que vai ser encontrada na vida histórica da Didática: surge de uma
crise e constitui um marco revolucionário e doutrinário no campo da
Educação. Da nova disciplina espera-se reformas da Humanidade, já que
deveria orientar educadores e destes, por sua vez, dependeria a formação
das novas gerações. Justifica-se, assim, as muitas esperanças nela
depositadas, acompanhadas, infelizmente, de outras tantas frustrações.
Constata-se
que a delimitação da Didática constituiu a primeira tentativa que se
conhece de agrupar os conhecimentos pedagógicos, atribuindo-lhes uma
situação superior à da mera prática costumeira, do uso ou do mito. A
Didática surge graças a ação de dois educadores, RATÍQUIO e COMÊNIO,
ambos provenientes da Europa Central, qua atuaram em países nos quais se
havia instalado a Reforma Protestante (2).
COMÊNIO
escreveu, entre outras obras, a Didática Magna (3) , instituindo a nova
disciplina como "arte de ensinar tudo a todos". Dessa ambição participa
também RATÍQUIO, e ambos, pautados por ideais ético-religiosos,
acreditam ter encontrado um método para cumprir aqueles desígnios de
modo rápido e agradável. Na verdade a instrução popular é crucial para a
reforma religiosa, e a busca de procedimentos que propiciassem
rendimento ao ensino torna-se importante. Obedecem á utopia da época: a
ideia baconiana da atenção á natureza - esta é o modelo que os didatas
supõem imitar quando aconselham seguir sempre do fácil ao difícil, ir
das coisas às ideias e do particular ao geral, tudo sem pressa. Numa
época em que o latim dominava, propunham iniciar o ensino pela língua
materna e por meio de livros ilustrados, como exemplificou COMÊNIO.
Tem-se notícias de experiências educacionais realizadas conforme os
princípios expostos, embora nem todas tivessem tido sucesso. Não existem
fronteiras, na obra do século XVII, entre Educação e Ensino, pois o
objeto da Didática abrange o ensino de conhecimentos, atitudes e
sentimentos.
Essa
etapa da gênese da Didática a faz servir, com ardor, á causa da Reforma
Protestante, e esse fato marca seu caráter revolucionário, de luta
contra o tipo de ensino da Igreja Católica Medieval. Doutrinariamente,
seu vínculo é com o preparo para a vida eterna e, em nome dela, com a natureza como "nosso estado primitivo e fundamental ao qual devemos regressar como princípio(4).
Observa-se,
entretanto, que, na Europa Ocidental Católica, outros pensadores também
já haviam discutido, como humanistas, a reforma de procedimentos
educacionais, contestando o medievalismo. É o caso de MONTAIGNE
(1533-1592) em seus ensaios, e de RAMUS (1515-1572) na prática escolar.
Mas é aos reformadores do século XVII que, como disse H. NOHL (5),
deve-se a "autoconsciência" do proceder educativo, retirando as
cogitações didático-pedagógicas da Filosofia, da Teologia ou da
Literatura, onde, até essa época, encontravam abrigo.
Conheçam Seus Alunos - diz Rousseau
As
instituições dos didatas parecem ter-se estiolado no decurso do tempo e
a História da Educação consigna apenas iniciativas esparsas até o final
do século XVIII. ROUSSEAU é o autor da segunda grande revolução
didática. Não é um sistematizador da Educação, mas sua obra dá origem,
de modo marcante, a um novo conceito de infância. O Século das Luzes,
que tanto valoriza a razão, tem nos excessos românticos de ROUSSEAU o
seu contraponto. Sob certos aspectos ele aparece como um continuador das
ideias dos didatas, mas dá um passo além de suas doutrinas quando põe
em relevo a natureza da criança e transforma o método num procedimento
natural, exercido sem pressa e sem livros.
A
prática das ideias de ROUSSEAU foi empreendida, entre outros, por
PESTALOZZI, que em seus escritos e atuação dá dimensões sociais a
problemática educacional. O aspecto metodológico da Didática
encontra-se, sobretudo, em princípios, e não em regras, transportando-se
o foco de atenção às condições para o desenvolvimento harmônico do
aluno.
A
valorização da infância (6) está carregada de consequências para a
pesquisa e a ação pedagógicas, mas estas vão ainda aguardar mais de um
século para concretizar-se. Enquanto COMÊNIO, ao seguir as "pegadas da
natureza", pensava em "domar as paixões das crianças", ROUSSEAU parte da
ideia da bondade natural do homem, corrompido pela sociedade. É em sua
obra O Contrato Social que discute a reforma da sociedade, tão
necessária quanto a reforma da Educação: por essa vertente de seu
pensamento é que participa da renovação ideológica que precedeu à
Revolução Francesa.
Inflexão Metodológica Herbartiana, no Século XIX
Na primeira metade do século XIX, João Frederico HERBART (1776-1841) deseja ser o criador de uma Pedagogia Científica, fortemente influenciada por seus conhecimentos de Filosofia e da
Psicologia da época. Situa-se no plano didático ao defender a ideia da
"Educação pela Instrução", bem como pela relevância do aspecto
metodológico em sua obra. 0 método dos passos formais" celebrizou o
autor, que o considerava próprio a toda e qualquer situação de ensino.
Partindo da concepção de "massas aperceptivas" constituídas por
conhecimentos anteriores, graças aos quais se aglutinam os novos, seguia
ordem e sequência invariáveis(7) Teve sucesso na Europa, onde suas
ideias foram defendidas e adaptadas por discípulos (ZILLER, REIN); e nos
Estados Unidos, onde e reconhecida sua influência sobre THORNDIKE,
também associacionista.
Os
discípulos de HERBART, para dar praticidade a suas ideias, desdobraram
essas etapas em: preparação, apresentação, associação, sistematização e
aplicação.
HERBART
tem o mérito de tornar a Pedagogia o "ponto central de um círculo de
investigação próprio". No entanto, a Psicologia ainda não havia deixado o
caminho do empirismo sensualista de origem filosófica e não ainda
experimental. Seu propósito te futuro, mas os meios para realizá-lo eram
ainda inadequados.
Seria
HERBART um prolongamento da vertente metodológica dos didatas do século
XVII? Constituiria um intervalo formalista no impulso que leva de
ROUSSEAU à Escola Nova? Observe-se que os fundamentos de suas propostas,
e estas mesmas, vieram a merecer críticas dos precursores da Escola
Nova cujas ideias começam a propagar-se ao final do século XIX.
Um Intervalo na Trajetória Histórica: comentário sobre o duplo aspecto da Didática
Da
original proposta didática do século XVII, duas linhas se destacam e
estarão daí em diante em conflito. De um lado fica a linha metodológica,
que, fundamentada no que se conhecia sobre a natureza no século XVII ou
sobre a Psicologia no começo do século XIX, acentua o aspecto externo e
objetivo do processo de ensinar, embora o faça em nome do sujeito
(criança, aluno, aprendiz) que se pretende ensinar de modo eficiente. A
linha oposta parte do sujeito, de seus anseios e necessidades,
acentuando o perene interno do educando.
Ora,
esse aspecto metodológico da Didática que coloca sua atenção e força na
tarefa do professor, e que acentua a ordem e a gradualidade do processo
de ensino, foi esmaecido em ROUSSEAU, em benefício de uma outra ordem,
aquela indicada pelo desenvolvimento da criança e dominada, sobretudo,
por suas necessidades e inferes: Dá-se precedência ao aspecto subjetivo
do processo, aspecto próprio ao aluno que e; aprendendo, sendo
interdependentes e relacionados, esses dois polos do processo didático
merecem, na história da Educação, localização diferente, destacando-se
ora uma ora outra. Há mesmo uma espécie de luta ou competição entre
eles, no decurso do tempo.
A
Didática do século XIX oscila entre esses dois modos de interpretar a
relação didática ênfase no sujeito - que seria induzido, talvez
"seduzido" a aprender pelo caminho com curiosidade e motivação - ou
ênfase no método, como caminho que conduz do não-saber ao saber, caminho
formal descoberto pela razão humana.
No
fundo revela-se a dialética das relações entre o homem e o meio.
Pergunta-se o que é mais poderoso em Educação: o esforço auto-educativo
do sujeito ou a pressão externa do meio social e cultural? Vemos que até
esse século a questão não é resolvida e prol a dicotomização da
Didática, separando um caminho "de fora para dentro" que excluí o outro,
"de dentro para fora" e vice-versa.
Quanto
à relação entre Didática e Sociedade ocorre o seguinte: no século XVII,
a constituição dos estados nacionais e a modernidade valorizam o ensino
e desejam aumentar seu rendimento. O método é interpretado como uma
defesa dos interesses da criança, que é peça importante de uma nova
sociedade, a sociedade reformada de principados germânicos. Já o final
do século XVIII é a época revolucionária, em que o feudalismo e a
monarquia absoluta receberam seu golpe mortal. A pedagogia de ROUSSEAU
deveria ter uma grande repercussão, pois estaria plenamente de acordo
com a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Tem, no entanto,
ambiguidade: o exemplo educacional que propõe em seu romance, Emílio, é o
de uma criança de família burguesa abastada, ocupando só para si um
preceptor. Talvez por isso suas ideias não tenham
sido praticadas senão em pequena escala e por uma personalidade
excepcional: PESTALOZZI. São esquecidas diante do prestígio da corrente
herbartiana. É o novo formalismo da burguesia que, segundo CHARLOT, volta facilmente á pedagogia dos jesuítas e encontra seu paradigma em HERBART.
No
entanto, estamos já no caminho do que se convencionou chamar o Estado
representativo, seja na forma de monarquia constitucional (Inglaterra e
França pós-revolução) ou na de república, na Europa e América dos
séculos XIX e XX. O pressuposto é a igualdade entre os homens e a
Educação política do povo, só conseguida se houver uma Educação liberal.
Quanto aos Estados socialistas que se vão desenvolver a partir do
primeiro quarto do século XX, a sua própria necessidade de reorganização
política impunha um esforço de Educação, mas desconfiava dos rumos
escolanovistas, que se anunciam.
A Escola Nova
Não
é coincidência que a era do liberalismo e do capitalismo, da
industrialização e urbanização tenha exigido novos rumos á Educação. Na
burguesia dominante e enriquecida, a Escola Nova vai encontrar
ressonância, com seus ideais de liberdade e atividade.
É
preciso considerar, no entanto, que já se iniciam as novas doutrinas
socialistas que ao final do século vai ser progressivamente dominadas
pelo marxismo. Na prática, o século assiste ao despontar dos poderes
públicos com relação à escola popular, aos debates entre a escola laica e
a confessional e às lutas entre orientações católicas e protestantes,
em países atingidos pela Reforma.
O
grande desenvolvimento científico e técnico convive bem com as
orientações pragmatistas que se desenvolvem na América, gerando novas
ideias educacionais. A lenta descoberta da natureza da criança que a
Psicologia do final do século XIX começa a desvendar sustenta uma
atenção maior, nos aspectos interno e subjetivo do processo didático.
Numa relação que só pode ser plenamente compreendida como de
reciprocidade, uma nova onda de pensamento e ação faz o pêndulo oscilar
para o lado do sujeito da Educação.
O
movimento doutrinário, ideológico, caracteriza-se por sua denominação
mais comum: Escola Nova, também Renovada, Ativa ou Progressista,
conforme as vertentes de sua atuação. Contrapõe-se, pois, a concepções
consideradas antigas, tradicionais, voltadas para o passado.
Apresenta-se com tonalidade crítica, contestadora, revolucionária e seus
escritos têm, muitas vezes, um tom panfletário, proselitista, talvez
utópico. É caso de distinguir-se o significado de novo e de recente pois
o movimento declara, como precursores, todos aqueles que mesmo em
outras eras atendem às condições da infância e poderiam entrar na
fórmula consagrada de atender às crianças conforme seus Interesses, por
meio de suas atividades e de um ambiente de liberdade. Nova seria,
sobretudo, a amplidão do movimento e sua roupagem moderna.
O
movimento de ideias, que surge simultaneamente na Europa e na América,
apresenta realizações. As primeiras ideias propõem a segregação dos
alunos em internatos situados no campo, fórmula essa, certamente, só
acessível à burguesia do século XX que enriquece no bojo da
industrialização e de demais facetas do capitalismo florescente. Mas a
doutrina e as realizações são suficientemente variadas para acolher
tendências com vínculo social (KERSCHENSTEINER(8), nas escolas de
Hamburgo; Freinet, na França) ou individual (Plano Dalton de H.
PARKHURST), com valorização das realizações práticas (projetos) ou
intelectuais (problemas) etc. A vertente americana é dominada por John
DEWEY, que criou uma escola-laboratório na Universidade de Chicago,
defendendo a metodologia da Escola Ativa, no âmbito de uma Escola
Progressiva, comprometida com a expansão do ideal democrático americano.
A fundamentação psicológica e filosófica encontra-se no pragmatismo de
William JAMES, explicando-se assim a tendência de valorizar o
conhecimento na medida em que este orienta a ação.
Na
Europa como nos Estados Unidos, pode-se arrolar tendências diferentes: a
psicopedagogia com CLAPARÈDE, FERRIÈRE, BOVET; a medicina pedagógica
com MONTESSORI e DECROLY ou a sociopedagogia de FREINET, DEWEY,
KERSCHENSTEINER e COUSINET. A base psicológica é predominantemente
funcionalista, mas afastando-se tanto do pragmatismo americano quanto
das influências do associacionismo (9); no entanto, os fundamentos
sociológicos divergem, indo da linha socialdemocrata â socialista.
Um
dos representantes do movimento, Adolphe FERRIÈRE, afirma que o termo
Escola Ativa era desconhecido até 1918 e só se divulgou amplamente a
partir do final da Primeira Guerra Mundial. Na verdade, a expansão da
Escola Nova ou Ativa data dessa ocasião. Preocupam-se os pedagogos, já
nessa fase, em evitar um novo formalismo, considerando que se tratava de
uma experiência aberta, em termos de programas e métodos, mas centrada
em torno do ideal de uma "atividade espontânea, pessoal e produtiva".
FERRIÈRE reclama a necessidade de que se ponha à prova os princípios
teóricos de seus organizadores.
Mas,
haveria uma teoria única, de Educação ou de ensino? Parece-me que,
sobretudo, formou-se um amálgama doutrinário que tinha raízes no
naturalismo em seu aspecto filosófico do respeito à criança, nas
novíssimas pesquisas psicológicas que destacam a atividade interessada e
espontânea como fonte de conhecimento, e nos movimentos sociais cujo
denominador comum -entre socialismos e democracias - é a exigência da
participação de toda a população nas decisões políticas, uma igualdade
teórica.
No Final do Século, a Didática Oscila Entre Diferentes Paradigmas
“Um
paradigma (ou um conjunto de paradigmas) é aquilo que os membros de uma
comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica
consiste em homens que partilham um paradigma.”
O associacionismo ("associação de ideias") vincula-se ao automatismo de um ensino baseado em repetição e exercício.
Funcionalismo
e pragmatismo, por sua vez, acentuam a função do conhecimento, a
"aprendizagem com um fim em vista “. Tornam-se, na prática, mais ou
menos utilitaristas, conforme os objetivos valorizados.
Trocando-se
a palavra "científica" por "educacional" obtém-se uma afirmativa que
merece ser considerada. Qual o paradigma compartilhado, quanto á
Didática? Como é que a comunidade educacional interpreta esse paradigma?
Considero
que a dificuldade de responder a essas questões encontra-se no fato de
que não há um paradigma, mas talvez paradigmas em conflito. E atrevo-me a
dizer que boa parte dessa situação se deve a uma espécie de
contaminação entre a Didática disciplina e o conteúdo dos cursos.
Explicando melhor, o continente didático acolhe diferentes conteúdos, em
termos de tendências doutrinárias ou teóricas. Ou seja, algumas obras
ou cursos privilegiam determinadas inflexões-sociológicas, psicológicas,
filosóficas -, mas nem sempre as mesmas. Interpretam o Ensino de muitos
modos. Há diferenças entre posições teóricas e diretrizes metodológicas
ou tecnológicas. E condena-se o continente por seu conteúdo.
Na
verdade, há uma ação de "retorno" do segundo sobre o primeiro e pode-se
acusar certas restrições à Didática (quando se torna somente uma série
de técnicas docentes ...) ou certas expansões da área (quando se expande
até tornar-se uma sociopolítica do ensino). Há outros exemplos,
facilitados pela complexidade do fenômeno didático, por seus múltiplos
aspectos, pelo comprometimento da sala de aula com a escola, com a
comunidade, com a sociedade, com a cultura que interpreta a realidade da
vida.
Tomar
consciência que a Didática hoje oscila entre diferentes paradigmas pode
ser algo muito auspicioso para a comunidade pedagógica. Na verdade, ela
nunca foi monolítica: é o que prova a própria necessidade de
adjetivação adotada tantas vezes: Didática renovada, ativa, nova,
tradicional, experimental, psicológica, sociológica, filosófica,
moderna, geral, especial etc. Hoje, menos do que nunca. Mas o exame
crítico de seus contornos, e sobretudo do núcleo de sua contribuição à
Educação, tem a obrigação de evitar que se peça a essa disciplina que dê
mais do que lhe compete produzir, ou bem menos do que dela se espera:
inchar ou encolher não são sintomas de boa saúde. Também não será um bom
remédio aquele que mate o paciente: colocando-se a disciplina como
derivação ou parte de outra de caráter tecnológico ou sociológico. Pois é
certo que a Didática tem uma determinada contribuição ao campo
educacional, que nenhuma outra disciplina poderá cumprir. E nem a teoria
social ou a econômica, nem a cibernética ou a tecnologia do ensino, nem
a psicologia aplicada à Educação atingem o seu núcleo central: o
Ensino. Esse núcleo, que tantas vezes ficou obscurecido pelo conceito de
Método, algo que deveria ser entregue, "presenteado" ao professor, e
outras pela relevância do sujeito-aluno, unilateralmente e
individualmente, sem que se pudesse discernir a dialética professor -
aluno (no singular, como no plural) que deve nortear as pesquisas sobre o
processo.
É
como decorrência desse conceito nuclear que se situam as inquietações
da Didática atual. É esse conceito que é objeto de controvérsias
teóricas, que às vezes levam a disputa ao campo interdisciplinar do
"currículo", como que exigindo da Didática que proceda ã sua invasão, já
que o conteúdo do ensino - o "o quê" se ensina - tanto pode ser
problema didático quanto curricular. Outras vezes leva a outro campo
inter-relacionado, o da Psicologia do Desenvolvimento ou Aprendizagem,
já que o êxito do processo de Ensino, aquilo mesmo que justifica
tentá-lo, é a Aprendizagem. E, conforme a Teoria, surge todo o problema
do desenvolvimento intelectual, afetivo, moral, social, igualmente
interdisciplinar. Mais um problema de limites, e crucial, está nas
outras questões: por que ensinar? e para quê? E chegamos aos limites da
Filosofia da Educação, da Sociologia, da Política, pelo menos. Já se
disse que, tomando de empréstimo ideias exteriores à Pedagogia, esta se
encontrava sempre em atraso em relação aos sistemas filosóficos
interpretativos do mundo. Aplica-se essa crítica á Didática?
Dei esses exemplos para mostrar que o inter-relacionamento da Didática com outras áreas do conhecimento é intenso e constante, o que de modo algum prejudica sua autonomia, mas, ao contrário, vem enriquecê-la. Há alguns anos, visualizei a situação didática como um tronco de cone no qual uma secção menor (a) refletindo o plano da relação humana, vivido na situação didática típica; uma secção intermediária (b) destacando o aspecto técnico do ensino; e a mais ampla
(c), que chamei de região cultural, na qual se decidem objetivos e
conteúdo. Mas a situação repousa sobre bases que abrangem todos os
aspectos da sociedade. Ora, a Didática como disciplina continente deverá
abranger conteúdos capazes de resolver os problemas dos três
planos em sua dimensão diacrônica ou evolutiva (níveis, etapas) e
sincrônica ou horizontal (diversidade de conteúdos), considerando,
ainda, como o fez o Prof. Luiz Alves de MATTOS, o ciclo docente
(previsão, execução, avaliação).
Qual a Situação Atual da Didática?
Chegou o momento de procurar responder às questões iniciais, que giram em torno do objeto de estudos e da delimitação do campo da Didática, de sua autonomia e relacionamento com outras áreas de conhecimento e reflexão.
Verificou-se
que o título Didática iniciou-se há cerca de três séculos, com os
"didatas", o que não significa que sejam estes os autores da palavra, já
corrente como qualificativo. Passa a reunir sob essa rubrica os
conhecimentos que cada época valoriza sobre o processo de ensinar. No
decurso do tempo outros termos tentam tomar a si os conteúdos didáticos
(Pedagogia, Metodologia etc.), mas a Didática persiste em manter seu
conteúdo.
Há
um significado ambíguo que ora acentua o Ensino como
modelagem/armazenagem, ora o entende como
desenvolvimento/desabrochamento. Não seria tão importante delimitar o
campo e distinguir o objeto da Didática, não fora a estranha questão que
encontrei.
Novos
modos de interpretar o fenômeno Ensino, orientações práticas derivadas
de teorias diferentes, desencadeiam, parece-me, a necessidade de
encontrar um novo nome para um procedimento e uma reflexão que se
alteraram: se chamam o ensino de "direção da aprendizagem", exigem nova
denominação para a disciplina que dele se ocupa. Os adjetivos que são
acrescentados à Didática parecem periodicamente cumprir esse papel de
alterá-la ao sabor do seu conteúdo.
Acontece,
no caso, uma confusão entre uma disciplina e o que se conhece a
respeito de seu campo. Ora, uma disciplina, campo de estudos, ciência ou
arte, não pode ser confundida com os conhecimentos que constituem o seu
conteúdo próprio. Se este é impreciso e mutável, é porque ainda não se
"pôs a casa em ordem". Inventariar, ordenar, organizar o que se conhece
sobre Didática, á base da abundante experimentação desta segunda metade
do século, seria um dos meios de trabalhar esse setor. Refletir e
interpretar esses conhecimentos seria o fundamental.
Condenar
a Didática porque seu conteúdo não é satisfatório não resolve nossos
problemas práticos, seria como condenar a Medicina porque ainda não
resolveu o problema do resfriado comum. Se é indefinido o conteúdo,
parece mais lógico que se procure o núcleo fundamental da Didática do
que suas fronteiras, nesta era em que a interdisciplinaridade não só é
aceita, mas procurada.
Conseguindo-se
apontar o núcleo dos estudos didáticos, ou seja, o Ensino, como
intenção de produzir aprendizagem e sem delimitação da natureza do
resultado possível (conhecimento físico, social, artístico, atitudes
morais ou intelectuais, por exemplo), e de desenvolver a capacidade de
aprender e compreender, é fácil entender que suas fronteiras devem sei
fluidas. E que essa fluidez é qualidade e não defeito, pois permite sua
aproximação com conhecimentos psicológicos, sociológicos, políticos,
antropológicos, filosóficos ou outros.
Mas,
afinal, será mesmo a Didática apenas uma orientação para a prática, uma
espécie de receituário do bom ensino? Esse é um dos mais discutidos
problemas da disciplina. Se assim fosse não valeria a atenção de tantos,
embora possa até chegar lá, como qualquer disciplina que comporta
aplicações práticas. Mas a teorização em Didática é quase uma
fatalidade: em todas as discussões há, explícita ou implicitamente, uma
tomada de posição teórica. Disse um eminente pensador, há muitos anos,
que o pedagogo quase nunca foi o filósofo de sua pedagogia ... Assim é a
Didática, que, como vimos, se aproxima de outras teorias, em sua
necessidade de explicar as relações entre os eventos que estuda, pois, a
função da teoria é a explicação.
Há
alguns anos muitas esperanças foram depositadas nas teorias de Ensino
ou da Instrução, que apareceram. Seriam, talvez, prematuras, de onde não
se terem firmado. Ou não teriam, na ocasião, suporte empírico? Faltaria
a elas, talvez, a organização dos termos teóricos e das relações
predominantes para atingir as explicações aceitas pela comunidade
educacional"?
Não
suponho que uma única teoria possa, de momento, dominar o campo da
Didática. As eorias promissoras são interdisciplinares, o que não tem
nada de estranho nem pejorativo, já que o ensino (já se disse como e por
que) é basicamente complexo, só podendo ser compreendido a partir de
outros elementos das ciências humanas e sociais. Assim, teríamos,
talvez, de integrar modelos provenientes de diferentes áreas, desde que
não fossem entre si contraditórios. Esta é a questão básica da
interdisciplinaridade: a percepção de relações comuns, explicações
coerentes, utilização dos mesmos métodos de pensamento.
A
Didática deve conviver com essa dupla feição, teórica e prática. Como a
Medicina. E uma prática muito especial, pela responsabilidade social
que a envolve, já que tem uma grande impregnação social. Mas são
diferentes a elaboração de um rol de prescrições e o traçado de
conjecturas, de proposições com diferentes graus de probabilidade, de
hipóteses conduzidas pela teoria. Pois os caminhos didáticos, ao
contrário do que julgam alguns tecnodidatas, são amplos e diferenciados e
não estritos e exclusivos.
Os
novos rumos da experimentação didática oferecem uma libertação dos
cânones estritos da pesquisa quantitativa, objetivada e controlada pela
estatística. Não é o caso da substituição pura e simples de um tipo de
investigação por outro, já que, conforme o problema, continua-se
recorrendo a diferentes instrumentos. Aliás, a Humanidade, quando
inventa novas técnicas, sempre ganha se não despreza as antigas, mas
integra-as às modernas. Trata-se, pois, de ampliar o campo e absorver as
auspiciosas modalidades da pesquisa qualitativa, hoje à disposição da
Didática.
É
certo que alguns problemas surgem, específicos para a pesquisa em
países por muito tempo dependentes, política ou economicamente.
Aponta-se que tais países acentuam, a partir dos anos 60, as pesquisas
de caráter socioeducativo, que versam sobre as relações entre a Educação
e outros processos sociais, deixando de lado a pesquisa concernente aos
processos individuais de aprendizagem e de ensino, "embora hoje se
comece a entender", disse LATAPI(10), "que a solução de numerosos
problemas sócio-educacionais depende em grande parte desse tipo de
pesquisa". Mas a recíproca também é verdadeira, acrescento.
Considerações Finais
O
percurso feito, do século XVII até nossos dias, indicou alguns marcos
no desenvolvimento histórico da Didática. Viu-se que seu primeiro
objeto, o Método, correspondendo ao modo de agir sobre o educando,
recuou ao fundo do palco quando sua outra face, o próprio educando ou
aprendiz, reclamou seus direitos. Um reviver metodológico,
no século XIX, pôs em relevo as características de ordem e sequência,
no processo didático, antes que a Escola Nova, retornando ao
puerocentrismo, em sua aspiração científica, recorresse à psicologia da
criança.
O
panorama do final do século XX não é simples. A Didática está
impregnada de todas as inquietações da época e, entre as muitas frentes
de pesquisa e exploração, ora requer auxílio da psicologia profunda de
origem freudiana, ora recorre às correntes neomarxistas. A oscilação
entre uma tendência psicológica que acentua a relevância da compreensão
da inteligência humana e sua construção e outra que se apoia na visão
sociológica das relações escola-sociedade, parece dominar o conteúdo da
disciplina. Esta, em consequência, vai-se familiarizar com teorias de
origem epistemológica e social, sem perder, no entanto, seu compromisso
com a prática do ensino. Nos programas de Didática, essa fermentação
ideológica nem sempre consegue um resultado harmônico: os novos temas
ainda não tiveram função aglutinadora e veem-se programações enviesadas
com exclusividade, de um lado ou de outro. Não se entenda, entretanto,
que defendo a possibilidade de uma "Didática Marxista" ou "Didática
Sociológica" ou "Didática Cognitivista (11) ou qualquer outra
adjetivação que indique um ponto de vista exclusivo sobre seu campo de
estudos. Pois ocorre que, por constituir-se a Didática numa disciplina
que pode ser desmembrada em vários planos (exemplifiquei com os planos
humano, técnico e cultural), vê-se que, em cada um deles, contribuições
de áreas diferentes se tornam úteis e mesmo necessárias. Sua dupla
dimensão (vertical e horizontal) e o ciclo didático sempre recomeçado,
por outro lado, vinculam-na diretamente à prática e esta, em sua
complexidade, exige recursos e técnicas, cuja eficiência é objeto de
pesquisa e experimentação. Mas não existem duas Didáticas, uma teórica e
outra prática: são duas faces da mesma moeda, e, como elas,
interdependentes.
Um
esclarecimento final, sobre o conceito foco da Didática: o Ensino.
Revela uma intenção: a de produzir aprendizagem; é palavra-ação,
palavra-ordem, palavra-prospectiva, palavra que revela um resultado
desejado. Mas, depois de PIAGET, não se pode mais entender o ensino como
a simples apropriação de um conteúdo: uma informação, um conhecimento
ou uma atitude, por exemplo. O ato assimilador, essência da aprendizagem
legítima, correspondente ao ensino que merece esse nome, terá como
subproduto (sub ou super?) alguma mobilização da inteligência redundando
em progresso cognitivo, em capacidade ampliada para conhecer (ou
aprender). É desse fenômeno que trata a Didática: do ensino que implica
desenvolvimento, melhoria. E mais:
não
se limita o bom ensino ao avanço cognitivo intelectual, mas envolverá
igualmente progressos na afetividade, moralidade ou sociabilidade, por
condições que são do desenvolvimento humano integral.
Quero,
ainda, deixar claro que, do meu ponto de vista, a Didática, como
disciplina e campo de estudos, parece acelerar o progresso no sentido de
uma autoconsciência de sua identidade - encontrada em seu núcleo
central - e de sua necessária interdisciplinaridade. Conseguir
plenamente a autonomia, sem prejudicar suas fecundas relações com
disciplinas afins, é um projeto que, a meu ver, depende tanto de um
esforço teórico e reflexivo, quanto de um avanço no campo experimental.
Amélia Domingues de Castro