Entre 1950 e 1980, diversos países da América Latina tiveram governos de caráter autoritário que cometeram arbitrariedades contra indivíduos e grupos sociais. Após a reinstalação das democracias, setores da sociedade civil começaram a se mobilizar para investigar os crimes cometidos pelos Estados ditatoriais. No Brasil, em 2011, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O relatório final da CNV, apresentado à sociedade em 2014, levantou o nome de 377 responsáveis diretos pelas práticas violentas ocorridas durante a ditadura civil-militar brasileira. Entre eles, estão os nomes de ex-presidentes militares, membros das Forças Armadas e policiais acusados de executar prisões arbitrárias, de cometer torturas e assassinatos, entre outros crimes. No mesmo ano em que o relatório da CNV foi apresentado, clubes militares afirmaram que 126 pessoas, entre civis e militares, também morreram pela ação dos grupos considerados terroristas no mesmo período. A frase que norteou o trabalho da CNV foi “pelo direito à memória e à verdade histórica”. O Exército Brasileiro também afirmou que “a fratura da sociedade é uma experiência para ser lembrada. Deixou-nos ensinamentos que não podem ser esquecidos ou negligenciados”.
DITADURAS CIVIS-MILITARES
Nas ditaduras, há uma dura repressão contra indivíduos, grupos e partidos de oposição, e a supressão, ou restrição, dos direitos e das liberdades públicas e privadas. Ou seja, a ditadura é o estado de exceção. Isso significa que, em uma ditadura, o governo pode fazer e desfazer leis com base em suas próprias vontades e interesses, sem o controle de nenhuma outra instância de poder, como ocorre em um governo democrático. A transparência na gestão das contas e do serviço público também costuma ser limitada pelos governos ditatoriais. Ditadura militar é aquela na qual os militares concentram o poder de decisão. Porém, nem toda ditadura conta apenas com a participação de militares. Na América Latina, entre os anos 1950 e os anos 1980, diversas ditaduras tiveram também a participação de civis, como empresários, políticos, policiais e outros setores da sociedade que apoiavam ativamente os regimes. Por isso, elas podem ser chamadas de ditaduras civis-militares.
Guerra Fria na América Latina
Como você estudou no capítulo 6, o pós-guerra foi marcado por uma intensa polarização entre regimes capitalistas e comunistas no mundo todo, que resultou na perseguição política de indivíduos considerados inimigos internos em muitos países. Acreditava-se que comunistas estariam infiltrados em países capitalistas, conspirando contra o sistema político-econômico vigente, e vice-versa. Nesse contexto, a América Latina tornou-se área de influência dos Estados Unidos e passou a fazer parte do bloco capitalista. Consequentemente, indivíduos ou grupos políticos associados ao comunismo passaram a ser perseguidos. Outro efeito dessa polarização diz respeito ao crescimento da influência dos militares na política latino-americana, já que eles eram vistos como responsáveis pelo combate às ideias comunistas. Essa projeção foi incentivada pelos Estados Unidos, que realizavam treinamentos e investiam na modernização dos recursos militares de diversos países para reprimir as ameaças comunistas.
O apoio dos Estados Unidos
Para organizar esse tipo de ação, os Estados Unidos criaram, em 1948, a Organização dos Estados Americanos (OEA), uma instituição que tinha como objetivo promover o desenvolvimento econômico e o social do continente. Além disso, a OEA servia aos países associados como um instrumento de combate à ameaça comunista e a qualquer tipo de subversão da ordem capitalista. Os Estados Unidos passaram assim a favorecer ditaduras que já existiam na América, como era o caso da ditadura cubana de Fulgêncio Batista, e também a apoiar golpes militares com a intenção de depor presidentes considerados como ameaças aos interesses capitalistas. A exemplo disso, em 1954, os Estados Unidos forneceram armas e recursos para um golpe militar derrubar o presidente da Guatemala, Jacobo Arbenz. No mesmo ano, apoiaram o golpe do general Alfredo Stroessner no Paraguai. Stroessner derrubou o presidente paraguaio Federico Chaves, que defendia uma política externa independente dos interesses estadunidenses e das instituições econômicas internacionais. Com o golpe, implementou-se uma ditadura que durou 35 anos, alinhada diretamente aos interesses dos Estados Unidos. O apoio estadunidense a golpes militares intensificou-se a partir de 1961. Nesse ano, após uma revolução, Cuba se tornou socialista, e isso contribuiu para reforçar o temor da disseminação da influência soviética na América. Por essa razão, os Estados Unidos decidiram criar a Aliança para o Progresso com o objetivo de treinar militares na América para reprimir movimentos revolucionários capazes de ameaçar os interesses americanos. Depois de alguns anos, em 1976, boa parte da América do Sul estava tomada por regimes ditatoriais.
Desde o século XIX, por meio da Doutrina Monroe, os Estados Unidos reivindicam o direito de intervir nos assuntos latino-americanos para promover os interesses estadunidenses. Em 1946, por exemplo, o governo dos Estados Unidos criou a School of the Americas, uma escola militar para o treinamento de militares latino-americanos. Presidentes estadunidenses influenciaram, auxiliaram e colocaram seus governos ao lado de diversas ditaduras civis-militares na América Latina na segunda metade do século XX. O argumento utilizado pelos Estados Unidos, frequentemente, era o de combate às ideias comunistas.
Características gerais das ditaduras latino-americanas
As ditaduras latino-americanas foram marcadas pelo intenso uso da violência e da repressão contra todos os grupos considerados uma ameaça aos interesses dos Estados Unidos e das elites nacionais. Com isso, não foram apenas indivíduos ou grupos sociais que defendiam ideias comunistas que foram reprimidos. Artistas, estudantes, sindicalistas, jornalistas e intelectuais, bem como políticos moderados ou que defendiam propostas mais democráticas, sofreram com a repressão. O uso de técnicas de tortura e de assassinatos foi comum nos regimes ditatoriais. Com isso, muitas pessoas foram obrigadas a abandonar seus países para escapar da repressão. Em alguns casos, como na Argentina e no Chile, a violência das ditaduras foi tão intensa que milhares de pessoas foram mortas ou desapareceram. Só no Chile, foram cerca de 40 mil as vítimas de torturas e prisões políticas, além dos 3 mil mortos ou desaparecidos pelo regime. Outra forma de repressão foi o uso da censura. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, programas televisivos e radiofônicos, entre outros exemplos, eram frequentemente censurados e impedidos de divulgar livremente informações ou críticas ao regime. Canções e outras obras de arte que denunciavam as violências das ditaduras foram proibidas, e seus autores sofreram ameaças de perseguição, prisão e morte.
Os regimes autoritários aproveitaram seus amplos poderes para realizar reformas econômicas. Para isso, promoveram a abertura das economias nacionais ao capital internacional e recorreram a investimentos e empréstimos internacionais. Esse tipo de reforma ajudou a dinamizar as economias, mas promoveu intenso endividamento, enfraquecendo a autonomia dos governos latino-americanos para comandar seus processos econômicos e projetar suas economias nacionais no mercado globalizado. As reformas também contribuíram para o aumento das desigualdades sociais no continente.
Ditaduras na América do Sul
Paraguai: 1954-1989
Em 1954, um golpe de Estado colocou no poder o general Alfredo Stroessner, que implantou uma ditadura. Em eleições caracterizadas por fraudes, Stroessner foi eleito presidente do Paraguai por sete mandatos consecutivos. A ditadura paraguaia estabeleceu que para ter acesso às universidades ou aos cargos públicos era necessário filiar-se ao Partido Colorado. Além disso, foi montada uma ampla rede de delação no país, provocando a morte e a prisão de milhares de opositores do regime.
Uruguai: 1973-1985
O Uruguai, assim como outros regimes ditatoriais da América do Sul, fez parte da Operação Condor, uma aliança dos regimes ditatoriais com os Estados Unidos para perseguir as pessoas identificadas como comunistas, socialistas e marxistas. Em 1976, refugiados políticos uruguaios foram capturados e torturados com o apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos.
Peru: 1968-1980
Durante a ditadura civil-militar no Peru, mais de 70 mil pessoas morreram nos confrontos entre Exército e guerrilheiros. Assim como nos demais países da América Latina, a ditadura peruana contou com apoio do governo dos Estados Unidos.
Bolívia: 1964-1982
Che Guevara, um importante líder de esquerda, que participou da implantação do regime socialista em Cuba, foi morto em 1967 pelo Exército boliviano com ajuda da CIA.
Brasil: 1964-1985
A CIA colocou em prática uma extensiva campanha de propaganda contra João Goulart, o presidente brasileiro, que acabou destituído e substituído por uma ditadura civil-militar. Ele havia iniciado uma série de reformas que limitava os lucros de empresas transnacionais, incluindo as estadunidenses.
Chile: 1973-1990
O general Augusto Pinochet, após um golpe de Estado, destituiu o presidente eleito Salvador Allende e instaurou uma ditadura alinhada aos interesses dos Estados Unidos. Durante a ditadura civil-militar chilena, cerca de 3 mil pessoas foram assassinadas e aproximadamente 200 mil foram para o exílio.
Argentina: 1966-1983
A tomada do poder pela ditadura civil-militar que ocorreu na Argentina teve apoio do governo estadunidense. Durante esse período, foram dois regimes ditatoriais – um de 1966 a 1973, e outro de 1976 a 1983. Durante esses regimes, cerca de 30 mil pessoas desapareceram no país.
A Operação Condor
As ditaduras latino-americanas não agiram sozinhas no combate aos grupos considerados subversivos. Em diversas ocasiões, os regimes autoritários negociaram entre si para perseguir opositores que se refugiavam em outros países latino-americanos. Um dos principais exemplos disso foi a chamada Operação Condor, um acordo estabelecido entre os governos do Brasil, da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Paraguai e da Bolívia para perseguir grupos que ameaçassem os interesses desses governos e garantir maior controle da repressão política na América do Sul.
Resistência, crise econômica e o fim dos regimes
Na década de 1970, quando o capitalismo entrou em crise em diversas partes do mundo, as economias latino-americanas pararam de crescer e começaram a sofrer com problemas frequentes de inflação, desemprego e recessão. Isso intensificou a pobreza, a desigualdade social e a concentração de renda. Como consequência, na década de 1980, a maior parte dos países latino-americanos atravessou um período de grave crise econômica.
A recessão abalou as estruturas das ditaduras latino-americanas e contribuiu para enfraquecer os regimes militares. Entre 1979 e 1990, 13 países retornaram ao Estado democrático de direito, entre eles, Bolívia (1982), Argentina (1983), Uruguai (1984), Brasil e Guatemala (1985) e Chile (1990). As forças de resistência cumpriram papel fundamental nesse contexto, como sujeitos históricos do processo de abertura dos regimes. Setores das sociedades latino-americanas procuraram resistir de diferentes maneiras aos governos autoritários. Por meio de suas obras, artistas criticaram as ditaduras, e muitos precisaram se exilar para fugir de perseguições políticas em seus países. Grupos de guerrilha adotaram a luta armada como maneira de combater o poder ditatorial, a exemplo dos Tupamaros, no Uruguai, e o Sendero Luminoso, no Peru. Também surgiram grupos que combateram os regimes de exceção de maneira pacífica. Um deles foi o das Mães da Praça de Maio, criado em Buenos Aires em 1977, um ano após a instauração da ditadura na Argentina. As mulheres do grupo se reuniam todas as quintas-feiras na Praça de Maio – importante local de protesto do povo argentino − exigindo do governo informações sobre seus filhos, detidos pelo regime ou desaparecidos, de cujos paradeiros os militares afirmavam desconhecer. Em virtude das denúncias das Mães da Praça de Maio, os crimes praticados pelos militares argentinos ficaram conhecidos em todo o mundo. Com o fim do regime militar na Argentina, o grupo passou a exigir o julgamento dos responsáveis por esses crimes. Até 2018, mais de 800 pessoas relacionadas à ditadura argentina foram julgadas e condenadas por crimes contra a humanidade.
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