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Cotidiano e sociedade no Brasil colonial

 Aspectos da sociedade

A sociedade que se constituiu na colônia portuguesa era extremamente hierarquizada. Num extremo estavam os senhores de terra e de escravos; no outro, os próprios escravos. Um pequeno grupo de trabalhadores livres e funcionários públicos constituíam uma camada intermediária, mas praticamente sem poder político.
Entretanto, entre as diversas regiões coloniais existiam muitas diferenças. No Nordeste, onde predominou a produção de açúcar, organizou-se a chamada sociedade açucareira, com a família patriarcal; na região das minas, que se desenvolveu a partir do século XVII, organizou-se uma sociedade mais urbana do que rural; no sul da colônia, por sua vez, a criação de gado e a prática da agricultura de subsistência possibilitaram uma sociedade mais flexível.
A população brasileira nos séculos XVI e XVII estava quase toda concentrada no litoral. Era rarefeita e marcadamente rural. Na Europa, até o fim do século XVIII a mobilidade social era restrita, pois predominava uma sociedade estamental: clero, nobreza e povo.
“No Brasil colonial, a despeito de existir apenas uma nobreza de fato, representada pelos senhores de engenho ou os ‘homens bons’ das câmaras municipais nas diferentes capitanias, foram frequentes as disputas entre os membros das três ordens em torno de harmonia ou poder, consequentes à estratificação. A pressão de comerciantes para participar das câmaras municipais constitui um exemplo, bem como a intervenção governamental para forçar certas irmandades a aceitar a ‘entrada de oficiais mecânicos’, isto é, ‘artífices’.
Poderíamos dizer que no Nordeste açucareiro havia o predomínio dos senhores de engenho e fazendeiros; no Maranhão, dos extrativistas; e, a partir do século XVIII, dos mineradores nas Geais e dos pecuaristas no Sul, sem esquecer da pobreza da região vicentina (São Vicente).
Esta é a visão simplificada, pois a sociedade colonial foi bem mais complexa. Grandes comerciantes do litoral, trabalhadores livres na região açucareira, vaqueiros no sertão, pequenos proprietários rurais na Capitania de São Vicente, tropeiros no Sul, artesãos nas Gerais, autoridades diversas, clérigos, mascate, negos libertos, brancos miseráveis, enfim, o país apresentava sobretudo uma sociedade com características diversas.
No Brasil a mobilidade social era maior do que em Portugal, pois na Europa a estratificação social vinha de tempos mais antigos. Para muitos a colônia era uma terra de oportunidades, atraindo aventureiros não só de solo português como de outras regiões europeias, variando no tempo e no espaço.
A possibilidade de ascensão social era pequena no Nordeste açucareiro, maior nas áreas pecuaristas, no litoral, e principalmente nas regiões mineradoras, já no século XVIII.
Até meados do século XVIII, para garantir a estratificação social predominou uma instituição portuguesa chamada morgadio, aplicada principalmente no Nordeste açucareiro. O morgadio tinha as seguintes características:
· Apenas o filho mais velho herdava as propriedades do pai – era o direito de primogenitura, cujo objetivo era impedir a divisibilidade dos bens;
· Os demais filhos iam estudar em Portugal, entravam para o clero ou acabavam conseguindo um emprego público;
· As mulheres recebiam dotes; em geral, grandes propriedades. Quando um potentado tinha várias filhas, era comum que algumas fossem enviadas a conventos. Lembre-se que nos grupos dominantes eram raros os casamentos por amor. O casamento era uma maneira de aumentar o patrimônio e selar uniões entre famílias; por isso, principalmente no Nordeste, as grandes famílias eram aparentadas.
Era comum também disputas e terríveis rixas entre famílias. Em São Vicente, ficou famosa a luta entre os Camargo e os Pires; no Nordeste, em pleno século XXI, ainda encontramos resquícios de tais práticas.
Os marginalizados constituíam a maior parte da sociedade: negros, índios, libertos, mestiços, brancos pobres, judeus e ciganos. Os dois últimos, ou tornavam-se cristãos, ou eram punidos pela Inquisição

A organização familiar variou bastante, senão vejamos:
- No Nordeste era típica a família patriarcal, congregando muitas pessoas numa extensa rede de parentesco;
- Em todo o Brasil existiram famílias nucleares (pai, mãe e filhos), mas pesquisas mostram a existência de mulheres que criavam seus filhos sozinhas.
Desde o início da colonização, houve uma miscigenação enorme. Apesar das críticas dos jesuítas, era comum homens brancos viveram amancebados com índias e negras. Ter filhos fora do casamento foi normal em todas as camadas sociais, o problema é que havia um enorme preconceito em relação aos chamados “filhos ilegítimos”, que eram privados dos direitos sucessórios e pejorativamente chamados de bastardos. A prática do concubinato era comum nas camadas mais pobres da população.
Sendo o poder econômico e político concentrado nas mãos de uma minoria, a justiça refletia esse tipo de sociedade. Os poderosos violavam as leis e impunham uma espécie de justiça privada em seus domínios, onde a ação do poder público quase sempre era ausente. Já aos pobres aplicava-se uma legislação penal severa. Nos processos criminais, o uso da tortura e as condenações à pena de morte eram comuns.
Apesar dos rigores da lei, a criminalidade era grande. Assassinatos por encomenda, assaltos, sequestros, emboscadas e crimes passionais faziam parte do cotidiano. Eram raras as festas populares que não terminassem em entreveros, com tiros, facadas e, é claro, algumas mortes.

Relações familiares nos engenhos de açúcar

A família dos senhores de engenho na colônia tinha uma organização patriarcal. O patriarca, geralmente era o homem mais velho da família e exercia um poder total sobre todos os outros habitantes da propriedade, desde seus parentes mais próximos até os escravos.
Nessa organização familiar, as mulheres praticamente não tinham poder. O único papel reservado a elas era o de esposa e mãe. Casavam-se muito cedo por volta de 17 anos de idade, em geral com pessoas escolhidas pelo pai. Tanto as casadas como as solteiras viviam no interior da casa-grande, saindo poucas vezes. Em geral não eram alfabetizadas: ninguém achava importante que as mulheres soubessem ler e escrever.
É importante destacar que a família patriarcal era o modelo considerado ideal pela elite colonial. Entretanto, existiam outras organizações familiares entre a população formada por escravos e pessoas livres. Por exemplo, muitas mulheres pobres eram chefes de família e responsável por seu sustento.

Casamento: um acerto entre famílias

Ao contrário do que acontece hoje, os casamentos não eram feitos por escolha individual; não eram os noivos que decidiam o casamento, depois de um período de namoro. A escolha era feita pelos pais e não levava em conta a afetividade, a atração de um pelo outro. Eram outros interesses que prevaleciam, principalmente os de parentesco, a fim de que as fortunas, por meio das heranças, ficassem entre poucas famílias. Por isso eram comuns os casamentos entre primos e entre tios e sobrinhas.
Depois do casamento o casal passava a morar na casa do pai da moça ou do pai do moço. O filho mais velho tinha autoridade sobre os mais novos, que o tratavam com respeito e podiam ser por eles castigados. Era uma espécie de preparação para substituir o pai, quando este morresse.

A vida nos engenhos

A sociedade formada em torno da produção do açúcar era essencialmente agrária, rural e vivia da exploração da terra.
Nessa sociedade havia dois grupos principais: o grupo da casa-grande, habitação do senhor de engenho, e o grupo da senzala, moradia dos escravos. Em meio a esses dois grupos viviam trabalhadores livres.

A casa-grande

A casa-grande era uma construção com grandes salas, numerosos quartos, acomodações confortáveis. Térrea ou assobradada, geralmente era construída num lugar central e um pouco elevado da propriedade, de onde se poderia ter uma visão das demais construções.
Ao lado da casa-grande, como extensão e apêndice dela, havia a capela, onde eram realizadas as cerimônias religiosas. Na capela reuniam-se os habitantes do engenho, nos domingos e dias santos, e também nos batizados, casamentos e funerais. Os membros da família do senhor de engenho eram sepultados na própria capela.

A senzala

Na maioria das senzalas havia pouca privacidade; geralmente os escravos viviam juntos. Em algumas senzalas havia lugares reservados para os casais. Mesmo em algumas fazendas, eram destinadas pequenas casas aos escravos casados, como uma forma de incentivo para terem filhos.
Ao contrário da casa-grande, cujos alimentos eram variados e de melhor qualidade, a alimentação dos escravos era insuficiente e pouco variada: farinha, feijão e, às vezes, algum pedaço de carne. As partes do porco que o senhor não comia, como o pé, rabo, orelha etc., eram misturadas ao feijão; foi desse costume que se originou a feijoada.

O poder do senhor de engenho

Se o escravo era as mãos e os pés do senhor de engenho, este, por sua vez, era uma espécie de juiz supremo não só da vida dos escravos, mais de todas as demais pessoas que viviam nos seus domínios: tanto do padre que rezava a missa aos domingos quanto da própria mulher, filhos e parentes.
A casa-grande residência do senhor de engenho do Nordeste, era, de fato, muito grande. Nos seus muitos cômodos podiam viver setenta, oitenta ou mais pessoas. Reinava sobre todos a autoridade absoluta do senhor de engenho, que decidia até sobre a morte de qualquer pessoa, sem ter que prestar contas à justiça ou à polícia. Fazia ele a sua própria justiça (...). Além da mulher e dos filhos do senhor de engenho, na casa-grande viviam os filhos que se casavam, outros parentes, escravos de confiança que cuidavam dos serviços domésticos, filhos do senhor de engenho com escravas e, ainda, agregados, que eram homens livres, que nada possuíam e prestavam algum serviço em troca da proteção e do sustento.
A grande dominação do senhor de engenho sobre tudo se explica pelo isolamento em que viviam e pela quase total ausência de autoridade de polícia e de justiça. As cidades eram poucas, muito pequenas e sua influência não se estendia aos engenhos. As poucas autoridades que viviam nessas cidades ficavam distantes dos engenhos, uns também muito distantes dos outros. Assim a dominação do senhor de engenho acabava se impondo (...)

Habitação

No século XVI a casa-grande mais parecia um forte. Construída com adobe ou tijolos, paredes brancas, telhados próprios para o desaguamento das grandes chuvas, muros lisos, janelas, varandas e uma decoração muito pobre, a casa-grande servia de moradia e de abrigo contra ataques de nativos.
A maioria das casas, porém, era extremamente pobre. As paredes eram feitas com adobe ou troncos de madeiras, e a cobertura compunha-se de palmas. Ficavam protegidas por paliçadas à moda indígena.
“nas terras férteis do litoral, ao pé do edifício maciço, a capela e as senzalas desdobraram os telhados chatos, enquadrando o terreiro. A pequena povoação negra cresceu sob a proteção daquela varanda: trocavam-se as influências, que transformaram a sociedade colonial, o seu espírito e as suas raças. Aí, era tudo mestiço...”

No século XVII, a preocupação hierárquica fez com que fossem criados solares de alas, portas nobres, escadarias e um pátio interno.
Foi no século XVIII que as habitações se tornaram mais sofisticadas. Aumentou a influência européia, especialmente a francesa. As casas-grandes tinham então janelas maiores, escadarias, salões, portas lavradas e exageros nas linhas dos telhados. Porém, quase todas as casas continuaram rústicas, os móveis escassos e a decoração praticamente nula.

Higiene

Os índios eram bastante asseados e tomavam vários banhos por dia. Os colonos imitavam os nativos.
“Era costume antigo em São Paulo saírem seus moradores no tempo do verão, nas horas em que o calor do sol mais se acende, a banhar-se nos rios Tietê, Tamanduateí, que com suas águas regam aquela cidade.”

Vestuário e alimentação

Os homens em geral usavam camisas e ceroulas. A maioria andava descalça. Já as mulheres vestiam uma saia, uma camisa e quando saíam cobriam o rosto com um véu. As roupas de luxo, por serem importadas, custavam exageradamente caro. Muitos se endividavam para externar um luxo que iam além das posses. As mulheres e os homens saíam para as festas com os chamados “trajes de igreja”, onde a seda, o veludo e as joias davam ares de requinte a uma aristocracia muitas vezes decadente e falida.
Escravos e pobres andavam maltrapilhos e seminus, escandalizando os viajantes estrangeiros que por aqui passavam.
Quanto à alimentação, os portugueses tiveram de se habituar à realidade da colônia, substituindo, por exemplo, o trigo pela mandioca.
Almoçava-se às oito da manha e jantava-se à uma da tarde; à noite rezava-se o terço, que durava mais de uma hora, ceiava-se, tomava-se um banho e ia-se dormir. Poucos tinham camas, pois a maioria preferia o costume indígena de dormir em redes.
“a superalimentação, os fortes pratos, os abusos africanos dos condimentos, a escassez ou ausência de legumes, a gula habitual, exacerbada pela arte das cozinheiras negras... colaboravam com a vida sedentária e preguiçosa do fazendeiro, por aquele ar de enfado, de precoce esgotamento, de gordura flácida, que se lhe tornou peculiar.”

No sertão, graças à influência indígena, comia-se menos, porém alimentos mais nutritivos. A vida ativa e a alimentação sóbria davam ao sertanejo saúde e longevidade.
Quanto aos escravos, em geral recebiam três refeições por dia. Feijão, farinha, carne-seca e água compunham o cardápio. Raramente consumiam verduras e frutas.

A medicina na Colônia

Durante todo o período colonial houve falta crônica de médicos (chamados na época de físicos) e de medicamentos. A cura das doenças ficava a cargo de benzedores e práticos.
A qualidade dos poucos médicos e cirurgiões deixava a desejar, pois poucos bons profissionais eram os que se aventuravam em terras inóspitas. Os medicamentos importados da Europa custavam caro e eram ineficientes.
Com os índios e africanos, os portugueses aprenderam a explorar a flora e a fauna em busca de ervas, raízes e substâncias que viessem a curar as diversas enfermidades que atingiam os colonizadores.
Podemos dizer que foram enormes as colaborações do Brasil, principalmente por meio de sua flora, à medicina portuguesa europeia.
“O Brasil, com sua natureza exótica e pouco conhecida, era um tesouro encoberto que poderia gerar muitas riquezas ao reino. Cabia então, à metrópole, conhecê-lo melhor. Data das últimas três décadas do século XVIII o grande incentivo do governo português ao campo das investigações científicas. O fomento dos estudos botânicos e os pedidos feitos pelo marquês de Pombal de exemplares da nossa flora marcaram o início da onda de valorização das ciências naturais no Brasil... Com as demais áreas a botânica e a medicina viram-se incentivadas. Foram inúmeras as solicitações de envio de ervas medicinais até então ignoradas ou pouco difundidas no reino.”
RIBEIRO, Márcia Moisés. Ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 63

O uso de benzimentos e de magias lícitas e ilícitas grassavam em larga escala, tendo enorme credibilidade da população. Veja os exemplos:
Para cicatrizar feridas:
“Abrazado Santo Amaro no fogo da caridade e da obediência mereceu andar a pé enxuto sobre as águas. Rogai por nós, aventurados Santo Amaro, para que sejamos dignos da promessa de Cristo.”
Para saber o sexo da criança antes do nascimento:
“Lancem um pouco de leite da mulher prenhe sobre um espelho de aço ao raio do sol, e se depois de uma hora virem que se une como uma pérola, indica ter concebido varão; se o leite ficar espalhados, concebeu fêmea.”

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